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Joinville, Santa Catarina, Brazil

CAPÍTULO 7 - PARTE III - INCERTEZAS


O sol já estava alto e Tatiana tentava lembrar seu passado, porém, exausta de procurar recordações onde não existia começo, nem meio, nem fim, ela fechou os olhos e começou a chorar.

Naquele momento de profunda angústia adentrou no quarto um homem que se identificou como detetive de polícia. Tatiana estava com o rosto molhado, olhos e nariz vermelhos e mal pôde pronunciar bom dia.

- Você está chorando porque alguém tentou te matar, não foi? – aproveitou ele.

- Me matar? – perguntou Tatiana, sobressaltada. – Alguém tentou me matar?

- Claro que sim. Não esconda a verdade da justiça, Tatiana – falou ele, severo. – A quem você está tentando proteger?

- Eu não me lembro... – respondeu ela, cada vez mais assustada com a atitude dele, sua voz entrecortada pelos soluços. – Não lembro de nada...

- Ora, vamos, moça! Não estou aqui para perder meu tempo. Quero o nome ou a descrição da pessoa que tentou matar você!

O homem era de aparência jovem, porém, demonstrava autoridade que não lhe era concedida. Enquanto Tatiana sentara-se na cabeceira, ele sacudiu-a pelos ombros.

- Quero o nome agora!

A servente que trazia a refeição matinal de Tatiana entrou também e presenciou a atitude do homem. Tratou de chamar uma enfermeira, que veio imediatamente. Tatiana gritava de horror e chorava como uma criança pequena.

- O senhor não tem direito de invadir assim um quarto e tratar dessa forma uma convalescente. Peço que se retire – ordenou a mulher. Em seguida, ela ajeitou Tatiana, que se encolhera deitada na cama e soluçava forte. – Fique calma, agora. Já está tudo bem. – A enfermeira apanhou um medicamento, espetou-o com a seringa e em seguida, injetou o líquido na válvula de soro. Aos poucos, Tatiana parou de chorar e ficou sonolenta. Não demorou muito e seus olhos se fecharam.




Paulo sentiu um cheiro estranho no ar e ajeitou-se na cama, abrindo os olhos devagar para habituá-los à claridade que vinha da sacada. A veneziana ficara aberta durante a noite e ele estranhou, pois sempre tomara o cuidado de fechar antes de se deitar. Um sabor amargo predominava em sua boca e provocou-lhe náuseas. Sua cabeça latejava dando a sensação de que havia ingerido uma grande quantidade de álcool.

Subitamente, ele sentiu que seu colchão se movimentou e olhou atônito para o lugar onde uma mulher se mexera, se espreguiçando em seguida. Paulo não acreditou quando viu Elisabete em sua cama e finalmente resgatou da memória os fatos da noite anterior. Ele estava muito confuso e sua primeira reação foi sair imediatamente da cama para fugir do pesadelo. Quando levantou, sentiu-se tonto e deu a volta na cama para ir ao banheiro tateando nos móveis. Viu a fantasia de Elisabete caída no chão ao lado da cama e supôs que ela estivesse nua sob o lençol. Engoliu em seco diante das evidências e sentiu nojo de si mesmo. Alcançou o lavabo e jogou água fria no rosto para afastar o mal-estar, que persistia, apesar da tentativa frustrada de se controlar. Voltou para o quarto e observou o cenário à luz do dia. Em seguida, andou até a sacada em busca de ar.

- Bom dia – disse Elisabete, enquanto ele estava de costas para a cama. – Como está se sentindo?

- Bem – respondeu ele, envergonhado. Continuou olhando para fora, enquanto ela levantava da cama, enrolada no lençol.

- Fico feliz, Paulo, porque ontem à noite você não estava bem, e por isso fiquei aqui.

- É? Para aproveitar-se da situação, você quer dizer – falou ele, em tom frio e distante, sem se irritar. Sentiu que ela se aproximou dele.

- Vou fingir que você não disse isso. É assim que você agradece por eu ter ficado cuidando de você durante a noite? – Ele afastou a cabeça do toque da mão dela.

- Elisabete, escute, eu não lembro o que exatamente aconteceu, parece que fui apagado durante essas horas, mas quero que saiba que eu não estava consciente do que estava fazendo...

- Não precisa se punir assim, meu querido – interrompeu ela, sorrindo para ele. – Não houve nada entre nós dois. Tranquilize-se.

Ele olhou diretamente nos olhos dela e franziu a fronte, cada vez mais perplexo.

- O que está querendo dizer?

- Que eu apenas dormi em sua cama, nada mais.

- Espera que eu acredite nisso? Olhe pra você – ele apontou-a nua enrolada no lençol.

- Eu não podia deitar com aquelas roupas incômodas.

Assim que respondeu, Elisabete foi até o closet e vestiu um roupão.

- Eu realmente não lembro de nada, Elisabete. O que me intriga é que você não está usando isso a seu favor.

- Quero que você me ame de verdade, Paulo, não porque há um contrato que o obrigue a fazê-lo. Quero formar uma família com você. Eu não usaria um truque barato deste tipo para conquistá-lo. – Ela começou a chorar baixinho e sua voz tornou-se um murmúrio. – Não é justo você me julgar assim depois de eu ter me esforçado para cuidar de você.

- Desculpe, Elisabete, não tive intenção de magoar você.

- Não tem importância. Quanto a esta bagunça, fique tranquilo que eu irei reorganizar seu quarto durante o dia.

Quando ficara novamente sozinho, Paulo refletiu sobre as atitudes que Elisabete tomara, mas, apesar de ter certeza de que ela estava tramando alguma coisa, sentiu um pequeno arrependimento por julgá-la.

Depois que se recuperou, Paulo voltou a pensar em Tatiana, que precisava dele naquele momento. Preparou-se e seguiu para o hospital.

Encontrou Tatiana dormindo e se aproximou para acariciá-la. Tatiana sentiu o toque dele e encolheu-se na cama, com medo.

- Vai embora – pediu ela. – Eu não tenho nada para dizer, não me lembro de nada. Vai embora!

- Tatiana, sou eu, Paulo. Deixa eu cuidar de você, por favor.

- Paulo? – Ao ouvi-lo, ela abriu os olhos e sentou-se na cama. – Pensei que era o detetive. Ele queria que eu contasse quem tentou me matar, mas eu não lembro de nada.

- Detetive? Quando foi que ele esteve aqui? – perguntou ele, alarmado.

- Hoje cedinho.

Paulo ficou indignado, porque a polícia havia garantido que não faria investigações.

- Calma, agora me conte como você está.

Tatiana não sentia segurança com ninguém. Imaginou que Paulo poderia ser responsável por ela quase ter morrido e ficou com medo. Naquele instante, algumas imagens surgiram em sua mente, em que Paulo demonstrava antipatia por ela. Ouviu a voz severa dele ao telefone. Lembrou do local em que trabalhava, sem se dar conta de que essa informação tratava-se de parte de sua memória. Outras pessoas apareceram, mas apenas rostos sem nome. As cenas desenfreadas causaram confusão e desespero e ela começou a chorar.

Sua memória vai voltar, Tatiana, pode acreditar – tranquilizou Paulo, desejando abraçá-la e confortá-la, mas temendo que ela reagisse de maneira negativa caso ele tomasse alguma atitude precipitada.

- Eu tenho família?

- Claro.

- Então, porque meus pais não vêm me ver?

- Você se lembra deles?

- Não.

- E de mim?

- Vagamente.

- Coisas boas? – perguntou ele, ansioso. Ela negou e deixou-o visivelmente decepcionado. – Tatiana, me escute, eu te amo e você também me ama. Precisa deixar eu cuidar de você.

- Não posso confiar em você. Pra mim, você é um estranho.

Paulo ouviu as palavras duras e não escondeu o quanto elas o machucaram. Tatiana observou a reação dele, mas não sentiu remorso algum em dizer aquilo, porque era verdade.

Eu vou localizar os seus pais – falou Paulo quando já ia se preparando para sair.

- Paulo – chamou ela. – Eu não sei quem sou, nem de onde vim, nem o que faço na vida. Estou sozinha e neste momento as pessoas que tomam conta de mim são o médico e as enfermeiras. Se não sei nem quem sou, como posso saber o que você é para mim? Eu posso ficar sem memória pelo resto da minha vida e não tenho direito de te dar esperanças, compreende?


Paulo assentiu com um gesto e saiu, cabisbaixo e desconsolado.




À tarde, Tatiana recebeu a visita de Luíza e Paloma e nem toda a descontração delas foi capaz de ajudá-la. Tatiana tinha a sensação de conhecê-las e Natália e Valéria eram apenas nomes sem rostos.

- Isso é angustiante – revelou Tatiana. – É como se eu tivesse nascido agora com este tamanho, já sabendo falar e andar.

- Agora literalmente você "viajou", Tati  - admirou-se Paloma. - Mas você deve estar aflita com tantas incertezas.

- Já que vieram, me contem o que vocês sabem sobre o dia em que eu quase morri.

Elas hesitaram, mas decidiram contar o que sabiam. Luíza começou:

- Você e a Valéria tinham acertado que você iria trabalhar após o expediente para compensar as horas. Então, após as 18h nós nos despedimos de você e de Natália... – Luíza fez uma pausa – O resto a Paloma pode contar.

- Nós ficamos algum tempo no pátio da empresa, quando finalmente Natália apareceu. Ela assustou-se com nossa presença, mas disfarçou muito bem e foi embora com a Luíza. Depois eu fui para minha casa. Não sei bem que horas eram quando o telefone lá de casa tocou. Quando atendi, o Fred do Centro de Operações se identificou e disse que você havia passado mal e que ele já havia acionado atendimento médico. Aí avisei a Luíza.

- Quando eu cheguei na empresa e encontrei a Paloma, havia uma ambulância e uma viatura de polícia estacionados no local. A partir daquele momento, começamos a desconfiar de que algo de mais grave tinha acontecido.

- O que exatamente fizeram comigo? – indagou Tatiana, impaciente. – De que jeito eles... eles... – E deixou o pensamento no ar.

- Alguém tentou te estrangular com um pedaço de jump – respondeu Paloma.

- Jump? – A palavra era desconhecida para Tatiana.

- Sim, são aqueles fios de telefone que aparecem nos relatórios que a gente confere e digita, lembra?

Tatiana negou, respirou fundo e levantou da cama por um momento, aproximando-se da janela. As moças não compreenderam ao certo o que se passava na mente dela e permaneceram em silêncio, até finalmente Tatiana olhar para elas.

- Essa Natália... – começou Tatiana, – o que ela é para mim?

- Ela gosta de você e é sua amiga – respondeu Luíza.

- Mas a Paloma falou dela de um jeito... como se ela fosse a culpada – raciocinou Tatiana.

- Não, Tati, você não me entendeu – tornou Paloma. – Eu acho que você contou alguma coisa para a Natália antes de ela sair naquela noite, algo muito importante que pode levar ao verdadeiro assassino... – Paloma corrigiu-se: – Ou assassina...

Tatiana voltou para a cama lentamente e as lágrimas começaram novamente a se formar. Não conhecer a si mesma era, indiscutivelmente, uma tortura para qualquer pessoa que sofresse uma amnésia.

Luíza e Paloma esperavam que Tatiana estivesse em condições melhores para contar a elas quem tentara matá-la, e ficaram visivelmente desapontadas. Imaginaram que a amiga estava com medo e por essa razão usara a amnésia como meio de proteção. Assim manipularam a conversa para se certificarem de que Tatiana dizia a verdade e concluíram que o acidente realmente deixara a sequela.

Tatiana, por sua vez, ficara revoltada com a insistência das garotas e pediu para que se retirassem do quarto, e elas, a contragosto, saíram. Tatiana sentia que todos estavam contra ela, apesar das demonstrações de amor e amizade. Desejou fugir do hospital, mas sabia que não tinha condições de fazê-lo, pois uma mulher sem lembranças não tinha para onde ir. Enterrou a cabeça nas mãos e soluçou.

Naquele momento, uma pessoa abriu a porta com cuidado e entrou devagar, aproximando-se da cama.

- Tatiana, que alegria ver você!

Tatiana teve um sobressalto e imediatamente parou de chorar.

- Quem é você?

- Que é isso, Tati? Não lembra de mim? Sou sua melhor amiga!

- Desculpe, há muitas coisas das quais não me lembro. Mas posso fazer uma tentativa. Diga o seu nome.

- Elisabete. Você não imagina como estou feliz. Levei um susto enorme quando a notícia saiu nos jornais.

- Desculpe, Elisabete, não consigo me lembrar – falou ela, frustrada.

- Calma, amiga, não chore, o pior já passou. Deixa eu te dar um abraço.

Elisabete sentou no canto da cama e abraçou Tatiana, que chorava baixinho e soluçava.

- Desde quando somos amigas? – perguntou Tatiana, sussurrando.

- Não se lembra de nada, mesmo, Tati? Foi no colégio, nós nos formamos juntas. Teve um garoto que estudou com a gente no 2º grau, nós duas gostávamos dele e fazíamos tudo para conquistá-lo. Nessa época, éramos rivais, mas depois que perdemos o gato para a menina mais popular do colégio, criamos uma grande amizade.

- Que pena eu não fazer a menor idéia do que você diz – disse Tatiana, com sinceridade. – Se você é minha amiga, conta como eu era, por favor. Preciso resgatar meu passado.

Elisabete sorriu para Tatiana e tomou uma das mãos dela para acariciar enquanto contava coisas da vida de Tatiana, que havia solicitado ao advogado para investigar. Mentira apenas ao dizer que eram amigas de longa data e a forma como haviam se conhecido. Sentiu que transmitira segurança para Tatiana, que a ouviu com a mesma atenção que uma criança dá para uma história de duendes e fadas. Entretanto, Elisabete não chegara ainda ao seu objetivo, que era levantar a verdade sobre o envolvimento de Tatiana com Paulo. Se Tatiana estivesse representando, Elisabete perceberia ao mencionar o nome dele.

- Recentemente me casei e estou ainda em lua-de-mel. O Paulo é ótimo. Ele é louquinho por mim – disse Elisabete, calando-se para verificar qual a reação de Tatiana.

- Eu estive no seu casamento?

Elisabete parou para pensar, pois aquela interrogação quebrara sua estratégia e ela teve de improvisar.

- É uma pena que você não se lembre. Você estava tão linda naquele dia, que quase foi a atração da festa.

- Verdade? – O rosto de Tatiana iluminou-se.

- Até o Paulo elogiou você.

- Como ele é? – perguntou Tatiana, inocentemente.

“Ela mordeu a isca”, pensou Elisabete, que já estava quase convencida de que a amnésia era real.

- Ah, eu devo ter uma foto dele aqui comigo... – Ela entregou uma fotografia e percebeu que Tatiana o reconhecera, ficando subitamente inquieta. – O que foi, Tati? Está sentindo-se bem?

- Estou... bem – gaguejou ela.

- É uma pena, mas preciso ir – disse Elisabete, fingindo pressa. Afinal, conduzira a conversa de modo admiravelmente articulado e já estava satisfeita.

- Você vem me ver mais uma vez? – perguntou Tatiana, confiando na falsa amiga.

- Claro que sim! Mas agora tenho que ir para casa esperar meu marido. Ah, eu o amo tanto, você não imagina como ele me faz feliz. Pena que você não lembre das minhas confidências, senão saberia como ele é honesto, fiel e companheiro.

Elisabete despediu-se dela e saiu, deixando Tatiana cheia de dúvidas, ao mesmo tempo em que conquistara a confiança dela.

- Coitada da Elisabete – falou Tatiana, sozinha no quarto. – Acredita tanto no marido e ele está tentando me convencer de que me ama. Como ele é insensível...






CAPÍTULO 7 - PARTE II - A SEQUELA


- 1, 2, 3!

Tatiana ouviu a contagem e sentiu como se estivesse sendo jogada do alto de um outdoor. A imagem do garotinho do aplique retornou ao seu pensamento e ela observou os dois enfermeiros que momentos antes suspenderam-na no ar a fim de transferi-la da maca para a cama. Eles terminaram de ajeitá-la, abriram a janela e Tatiana pôde ver o sol.

- Dentro de uma hora o seu café-da-manhã vai estar sendo servido – informou um dos enfermeiros, antes de se retirar do quarto.

“Uma hora. Quanto pode ser uma hora em um lugar como esse?”. Desejou olhar pela janela e respirar ar puro, mas a fraqueza não permitiu que ela levantasse da cama. Desconsolada, tornou a deitar, tentando organizar seus pensamentos, mas suas lembranças não evoluíam além do aplique que ganhara vida em sua imaginação. Não conseguia se recordar nem mesmo de onde surgira tal imagem. Cansada pelo esforço vão, fechou os olhos e dormiu novamente.

Um estrondo acordou-a e Tatiana encolhera-se na cama. A cortina voava por causa do vento forte. Lá fora, uma tempestade escurecera o dia. A moça sentou-se na cama e observou a refeição sobre a mesa. Confusa e desorientada, Tatiana começou a chorar.

De repente, um homem invadiu o quarto.

- Tatiana! – disse ele, eufórico. – Você nem imagina como eu estou feliz. Pensei que jamais voltaria a te ver.

Paulo tomou as mãos dela e as beijou, demonstrando alegria e paixão com aquele gesto. Tatiana, entretanto, afastou as mãos do contato dele e franziu o cenho, avaliando a situação. “O que este homem faz aqui, dizendo todas essas coisas?”, pensou.

- Tatiana? – Paulo percebeu que ela não o reconhecera e ficou sem saber que atitude tomar. – Você não se lembra de mim?

- Não – respondeu ela, insegura com a presença dele.

A felicidade pouco a pouco desapareceu do rosto de Paulo. Então se afastou e foi até a janela, onde refletiu um minuto, procurando não demonstrar sua decepção. Havia sido alertado para o fato de que Tatiana poderia sofrer uma sequela, mas não se preparara para uma possível amnésia.

- Desculpe – sussurrou ela, torcendo nervosamente o lençol com o qual se cobria. – Não sei o que está acontecendo...

- Essa chuva mudou o clima. Quer que eu feche a janela?

- Quero sim, obrigada.

Após executar a tarefa, Paulo aproximou-se devagar da cama dela.

- Está quase acabando o horário de visitas, mas eu volto amanhã. Tudo bem pra você?

Ela limitou-se a afirmar com um gesto.

- Então, tchau – disse ele, encaminhando-se para a porta.

- Eu devo ter sido especial pra você – disse ela rapidamente. Ele estava com a porta entreaberta, mas girou o corpo na direção dela para responder-lhe.

- Você foi e continua sendo especial pra mim, Tatiana. E eu vou virar o mundo de cabeça pra baixo até fazer justiça.

Após tal afirmação, ele fechou a porta atrás de si, deixando Tatiana solitária em um mundo sem recordações.







Paulo estacionou a pick-up na garagem logo abaixo de seu quarto. Passara o dia investigando o provável envolvimento de Elisabete com a tentativa de assassinato, mas descobrira que a polícia abafara o caso.  Lembrou da conversa que tivera com o delegado responsável, mas suas suspeitas não foram levadas em consideração. Cansado e abatido, Paulo finalmente desembarcou do automóvel e encaminhou-se para o seu refúgio. Sentia-se deprimido e vulnerável, pois a amnésia de Tatiana surpreendera-o.

Finalmente chegou na porta de seu quarto. Ao retirar a chave para destrancar a porta, Paulo ouviu uma música estranha e manteve os sentidos alertas. Girou a maçaneta e o som tornou-se mais audível. Entrou cautelosamente.

Paulo estacou na porta, tentando descobrir se errara o endereço. Estava no local certo, mas não no quarto de sempre. Assim que se livrou da paralisia inicial, deu alguns passos enquanto ouvia a música árabe e observava a transformação de seu espaço, onde véus, cortinas e tapetes imitavam a decoração de lares árabes, inclusive a comida e a bebida que ele experimentou. Atordoado com tudo aquilo, seu corpo começou a relaxar e seus olhos ameaçavam se fechar. Aproximou-se de sua cama, afastou o mosquiteiro, sentou-se e tirou os sapatos. Uma onda de calor espalhou-se por seu corpo, e Paulo deitou-se, cruzando os braços atrás da cabeça.

Para completar o ambiente misterioso e inebriante, surgiu uma dançarina, cujo molejo e beleza prenderam a atenção de Paulo, que se permitiu por um instante esquecer todo o mundo a sua volta. Elisabete estava com o rosto oculto pelo véu vermelho escarlate e ele reconhecera-a no mesmo momento.

Enquanto observava o corpo bem delineado, lembrava-se do dia em que a conheceu. Julgara-a uma garotinha na ocasião, mas agora estava diante de uma mulher sedutora, que provocava os sentidos dele.

Ela sorria, porque sabia bem do que era capaz. Quando seu advogado garantira que Tatiana perdera a memória, Elisabete tinha certeza que Paulo estaria arrasado e, portanto, vulnerável a qualquer investida. Por essa razão, apostou nos mistérios das 1001 noites com todo o glamour. Porém, seria cautelosa e não mais exigiria condições. Ela estava certa de que, mudando a estratégia, conquistaria Paulo definitivamente. Não seria mais a Elisabete orgulhosa, impiedosa, vingativa e autoritária. Pelo menos, não na frente dele.

    Elisabete então serviu uma bebida para ele, que se encostou na cabeceira da cama para aceitar. Bebeu devagar, sempre observando a mulher que, oficialmente era sua esposa. Naquele minuto toda a rejeição pelo casamento e o ódio que nutria por ela pareceu despropositado. Sua mente ficou confusa e ele não conseguia manter Elisabete em foco. Viu que ela se aproximou e sentou em seu colo. Um outro ritmo musical foi executado naquele instante, como se fizesse parte de uma fria programação. Ele queria encontrar forças para resistir, mas seus sentidos não respondiam aos seus apelos. Elisabete então o beijou e ele não a afastou.







CAPÍTULO 7 - PARTE I - O GAROTINHO DO OUTDOOR


Uma enfermeira que acompanhava a recuperação de Tatiana abriu um sorriso ao verificar que a paciente estava reagindo à medicação. Cumpriu os procedimentos e alertou um dos médicos da equipe que a atendera, e este autorizou a retirada do oxigênio e a transferência da paciente para o quarto. Tatiana, contudo, continuava em um sono profundo, apesar dos sinais vitais estarem se normalizando e o médico, prudentemente, adiou a alta da UTI.

- Mantenham a medicação – sugeriu ele. – Vamos ver como ela se sai daqui pra frente.



Enquanto seu organismo lentamente se reabilitava, Tatiana viajava em seu subconsciente, experimentando uma atmosfera lúdica de redescobrimento. Assim, resgatou a imagem do outdoor com aplique em forma de garotinho que ela vira descrito em uma revista quando era criança. Sonho e realidade confundiram-se e o garotinho do aplique ganhou vida e levantou, espreguiçando-se sobre o outdoor. Depois, caminhou pé ante pé de uma extremidade a outra, equilibrando-se para não cair. Esticou o bracinho curto para segurar a colher que estava dentro da bandeja de iogurte impressa. Mexeu e levantou a colher no ar. Perdeu o equilíbrio e caiu dentro do pote de iogurte, onde ficou mergulhado, mas emergiu em instantes para segurar-se nas bordas do pote. Escalou o outdoor e sentou bem no alto balançando as perninhas. O garotinho estava todo lambuzado e soltou uma gostosa gargalhada...



Tatiana abriu os olhos, ainda escutando bem distante a gargalhada. Ela moveu a cabeça lateralmente e estalou a língua algumas vezes, achando graça do próprio sonho. Entretanto, foi surpreendida pela tontura que parecia jogá-la de um lado para outro, como um brinquedo de parque de diversões, e agarrou-se com força nas bordas da cama. Ao mesmo tempo, sua nuca parecia pesada e dava-lhe a sensação angustiante de falta de equilíbrio e dormência. As glândulas salivares aumentaram o ritmo e em sua garganta um nó se formara, aumentando o mal-estar. A fraqueza tornava seu corpo mole e produzia a ilusão de que flutuava no ar. A sala girava como um carrossel e Tatiana fechou os olhos com força, respirando irregularmente. Procurou conter-se para não expelir o êmbolo em sua garganta e quando se recuperou tornou a abrir os olhos sem se mover.
Olhou o teto de laje onde lâmpadas fluorescentes formavam pequenos espectros. Onde estaria? Ela se perguntou e em seguida ouviu aparelhos que emitiam sinais sonoros semelhantes a bips cadenciados. Sopros muito fortes concorriam com os bips e a curiosidade dela foi ficando aguçada. Moveu a cabeça alguns centímetros para a direita e encontrou pendurada a bolsa de soro. Seus sentimentos modificaram-se ligeiramente, cedendo o lugar da curiosidade a um assombro quase desesperado. Levantou uma das mãos e viu sua pele perfurada por um tubo fino fixado à veia por um esparadrapo. Seguiu, com os olhos, outros fios que estavam presos em outras partes de seu corpo e notou que alguns se conectavam atrás da cama, embutidos na parede, os mesmos que emitiam aqueles sons ritmados e melancólicos; outro tubo descia a cama e continha algumas gotas amareladas que, naquele instante de nervosismo, aumentaram a sequência até se transformarem em um filete.

Tatiana então ouviu algumas pessoas dando instruções e olhou para o lado, onde acompanhou o atendimento de um senhor cujo corpo convulsionava devido aos choques elétricos em seu peito. Em seguida, o aparelho emitiu um único bip contínuo e a sala ficou novamente em silêncio. Tatiana fechou os olhos e duas lágrimas se formaram para em seguida rolarem por sua face.



O relógio marcava 22:05 e Paulo aguardava o diagnóstico de Dr. Roberto, que analisava atentamente os resultados do eletroencefalograma. O interesse do médico era visível e Paulo torcia as mãos nervosamente, temendo um resultado desanimador.

- O cérebro dela não sofreu nenhuma lesão – revelou, finalmente, o doutor.

- Verdade? Então ela vai ficar bem?

- Não posso garantir nada até que ela saia do coma.

- Quero vê-la.

- Hoje o horário de visitas acabou. Espere até amanhã. Agora preciso ver outros pacientes, ok? – disse o médico, estendendo a mão espalmada para Paulo, que saiu assim que a apertou.




A enfermeira trocou a bolsa de soro e substituiu o tubo de ligação com a veia, porque havia sangramento.

- Ai, ainda preciso disso? – gemeu Tatiana, sobressaltando a enfermeira. – Não quero mais ficar aqui.

A enfermeira retirou a máscara do rosto e sorriu para Tatiana, que lutava contra o poderoso efeito dos sedativos. Escutou a mulher informando para outro enfermeiro que chamaria o doutor e depois do que Tatiana pensou ter passado horas, apareceu um senhor diante dela, felicitando-a pela surpreendente recuperação.

- Você nasceu de novo, menina – disse o médico, alegremente.

      Tatiana procurou lembrar-se o que havia ocorrido e tentou racionar acerca daquelas informações desvinculadas. “Suspendam o sedativo”, ouviu o médico dizer, mas voltou a fechar os olhos.



CAPITULO 6 - PARTE IV - NO HOSPITAL




Ainda era muito cedo e a recepção do hospital estava fechada. Mesmo assim, ele entrou sorrateiramente pelo pronto-socorro e subiu as escadas até a UTI. Quando parou diante da porta, seu coração bateu com mais força e ele tocou no trinco.

Você não pode entrar aí agora, rapaz.

Sobressaltado, virou-se bruscamente e deu de encontro com uma mulher de aparência zangada, vestida com uniforme verde-água.

Por favor, minha esposa foi internada e eu estava em viagem... – mentiu ele.

- Não sei, pode complicar o meu lado – falou a mulher, aparentemente zangada. –  Mas, tudo bem.

Paulo finalmente entrou. A ansiedade apertara sua garganta e sua cabeça latejava com violência, arremessando-o em um mundo de ilusões à medida que observava um a um e preparava-se para o encontro tão aguardado.

Tatiana estava irreconhecível, com tubos de respiração, máscara de oxigênio, fios grampeados em um dos dedos que Paulo acompanhou até vê-los conectados ao monitor sonoramente melancólico, que previa mais a ausência de vida do que a recuperação em si. Lágrimas toldaram-lhe a visão diante da visão funesta. Paulo teve o ímpeto de arrancar Tatiana daquele lugar e tomá-la nos braços, mas controlou-se porque sabia que sua vida dependia dos aparelhos. Ele aproximou-se e beijou sua testa. Passou então a ler as informações que constavam em um formulário sobre uma prancheta, mas os dados técnicos não fizeram qualquer sentido para ele.

Paulo revoltou-se ainda mais quando viu Tatiana naquele estado e dentro dele cresceu a certeza de que Elisabete havia contratado algum capanga para assassinar a moça. Pela mente dele transitavam emoções negativas, onde aumentava o ódio por Elisabete, a revolta consigo mesmo, a sensação de culpa e o medo de perder Tatiana para sempre. Sua mente começou a girar novamente e ele teve vontade de sumir, como se a fuga o libertasse de seus problemas e apascentasse suas aflições. Ele ergueu as mãos e chamou por Deus, pedindo para morrer.

Subitamente, uma onda de calor espalhou-se por seu corpo, envolvendo-o. Um sopro na nuca despertou sensações tão intensas que, por um minuto, Paulo esqueceu suas dores e passou a acreditar que ele próprio possuía potencial para reverter a situação e lutar pelos seus princípios e ideais. Naquele minuto, ele refletiu o quanto havia sido fraco e covarde, por vezes escondido atrás de sua irritação e extremismo, que nunca o levaram a lugar algum. Após a morte de Evelin, Paulo fechara-se em sua concha, evitando olhar para as pessoas ou ajudá-las, porque se julgava o único ser humano digno de comiseração. Tinha pena de si mesmo e esquecera-se de lutar contra suas barreiras emocionais. O mundo tornara-se seu inimigo e tudo o desagradava. E agora lamentava que a pessoa que mais amava precisasse sofrer para que ele finalmente aprendesse a lição. Mas estava disposto a resgatar a vida de Tatiana e punir Elisabete adequadamente por todos os atos desumanos que ela praticara.

Desta forma, ele despediu-se momentaneamente de Tatiana e saiu à procura do médico que a atendera. Depois de alguns minutos de investigações, ele descobriu que o médico trabalhava no plantão noturno. Como não tinha tempo até a noite, Paulo continuou pesquisando, até conseguir o endereço da clínica, para onde se dirigiu imediatamente.




Natália chegou à empresa, mas não pôde trabalhar, porque a sala havia sido isolada em virtude do crime sucedido na noite anterior. Todos os funcionários estavam inquietos, mas ninguém sabia, ao certo, o que havia acontecido. Somente quando Luíza chegou, contou os fatos e todos ficaram revoltados. Natália caiu em prantos.

- Não chora, Natália...

- Ela tava tão feliz ontem – soluçou Natália, enxugando as lágrimas. – Não é justo...

A equipe da perícia trabalhou no departamento durante algumas horas pela manhã e assim que terminou as investigações, liberou o local. Paloma esteve na sala de Valéria e relatou o que sabia, porém, ocultou suas suspeitas e voltou ao setor, aproximando-se da mesa de Tatiana, onde encontrou Luíza.

- Precisamos avisar o corte – disse Luíza. – Você pega uma folha, eu pego o resto.

- Luíza, Natália, eu liguei para o hospital – começou Paloma.

- E então? – Natália estava ansiosa.

- Ela está em coma e não está reagindo à medicação.

- Meu Deus...

Luíza sentiu-se momentaneamente zonza e teve dificuldade para respirar. Imaginando a cena onde Tatiana fora surpreendida pelo ladrão, sentiu calafrios. O ambiente estava pesado, como se ali tivesse acontecido uma batalha sangrenta que deixara morte e destruição. Era como se a alma de Tatiana ainda estivesse por ali, presa no local de tortura, sem definição de vida ou morte...

- Luíza!

Luíza voltou repentinamente ao papel que segurava e uma corrente gelada de ar aguçara sua sensibilidade. Paloma estava rindo dela, perguntando se ela não tinha se perdido na “viagem”.

- Luíza, eu te chamei quatro vezes! Você foi longe...

- Paloma, como você pode rir assim depois de toda essa tragédia? – censurou Luíza, franzindo as sobrancelhas e desaprovando a atitude da amiga.

- A vida continua – respondeu Paloma, ressentida. – Então não podemos mais rir?

- Não nesse momento. O mínimo que podemos fazer é sermos solidárias. Tome, avise o corte enquanto eu vou à sala da Valéria.

Luíza entregou o relatório do corte e saiu em seguida. Natália observou a cena e perguntou:

- O que deu nela, Paloma?

- Sei lá. Acho que toda essa história deixou ela impressionada.

- Todo mundo ficou apreensivo, afinal, ninguém sabe o que aconteceu.

Paloma, que andava desconfiada que Natália pudesse saber de alguma coisa, não perdeu a oportunidade e fez especulações sobre os fatos do dia anterior enquanto Natália digitava. Dotada de uma aguçada sensibilidade e um apurado raciocínio, Paloma lançou hipóteses, esperando que Natália confessasse algo. Entretanto, sentiu que ela suspeitara de suas intenções ao responder cautelosamente suas inquisições. Insatisfeita, Paloma comentou que Paulo pedira o endereço onde Tatiana passava as férias e discretamente ameaçou revelar para a polícia que a última a conversar com a vítima antes do crime fora Natália. Esta compreendeu a indireta e imediatamente parou de digitar.

- Eu não estou entendendo aonde você quer chegar com toda essa conversa, Paloma. Só falta você querer me acusar de ter estrangulado a Tati antes de encontrar vocês duas lá fora.

- Não, claro que não  – falou Paloma, entretanto, continuou cismada.






Paulo chegou à clínica neurológica na Rua Orestes Guimarães, mas as atendentes não permitiram que ele fosse atendido por mais que implorasse para falar com o médico. De repente, um casal saiu de dentro de um consultório e estava se despedindo do médico que Paulo procurava.

- Você não pode entrar aí! – bradou a atendente, mas Paulo já se encaminhara para o consultório.

- Por favor, preciso de informações a respeito de Tatiana, que está na UTI do hospital São José.

- Desculpe, amigo, mas não tenho condições de dar informação nenhuma.

- Como não tem? – Paulo agarrou o médico pelo colarinho e encostou-o contra a parede.

Uma das atendentes telefonou para os seguranças do prédio e, enquanto se comunicava com alguém, observou que o médico lhe fazia sinal para ter cautela.

- Solte-me e então poderemos conversar civilizadamente – disse o médico.

Paulo soltou o homem e pediu desculpas. O médico perguntou seu nome.

- Paulo, entre por favor.

- Doutor Roberto, sinto muito ter feito isso. Eu mesmo não gosto de resolver nada na base da violência, mas é que preciso saber como Tatiana está.

- Ela é sua esposa? – perguntou o neurologista, com curiosidade. Diante da negativa, ele continuou: – Então deve ser uma mulher muito especial. Mas, vamos ao que interessa, Paulo. Como eu disse antes, eu não posso afirmar nada quanto ao estado dela, porque não cheguei a ler os exames. Você deve me entender. Vá ao hospital hoje à noite a partir das 22h e me procure. Prometo que vou avaliar primeiramente o caso dela.

- Doutor, ela vai sobreviver?

Roberto olhou para o homem diante dele, tão apreensivo quanto esperançoso e, escolhendo as palavras, respondeu:

- Ela tem chances de sobreviver, mas ainda não sabemos em que condições, entende?

Paulo respirou fundo e saiu do consultório, com lágrimas aflorando em seus olhos. Não era justo. As lembranças novamente o surpreenderam, provocando-lhe ainda maior revolta.



CAPÍTULO 6 - PARTE III - SOPRO DE VIDA


Tatiana não respirava mais. Aos poucos sentia que o sangue parava de circular e seu corpo frio perdia quase toda a atividade vital. Seus olhos fixos perceberam que o teto se aproximava e subitamente ela soube que estava morrendo. “Deus, já chegou a minha hora? Então não tenho mais medo.” Ela não sentia dor nem angústia, apenas estava se sentindo levitar e alcançar o teto, que começara a girar, aumentando gradativamente a velocidade. De repente, ela teve a impressão de que despencara de um precipício e seu corpo antes imóvel voltara a se mexer.

Após alguns segundos ela compreendeu o que havia acontecido e agradeceu. “Deus me deu uma chance!” ecoava em seu cérebro atordoado, que recebia um filete mínimo de ar para continuar em atividade. Com muito esforço, ela virou-se de lado no chão, sem conseguir forças para levantar-se. Sua visão turva misturava o rosto de Elisabete com as imagens dos pés da mesa e as rodas da cadeira giratória. “O telefone!” Ela viu o fio do telefone e tentou esticar o braço para segurá-lo. “Vamos, está tão perto”. Finalmente alcançou o fio e puxou o aparelho que estourou no chão ao lado de sua cabeça. Suas forças restantes estavam abandonando-a, mas algo dentro dela queria lutar. “Vamos, você não pode morrer, eu preciso de você”. Então, um a um, ela digitou os números de um ramal, que prontamente atendeu.

- Alô – falou a voz no outra lado da linha. – Aqui é o Fred. Alô!

- So... corro – ela conseguiu murmurar.

- Alô? – Fred estava irritado e achou que era trote. – Fala de uma vez antes que eu desligue!

- Ta...ti...a...na...me...a...ju...de...


O esforço de falar findou suas forças e ela deixou cair seu braço e fechou os olhos. Novamente a sensação de leveza invadiu seu corpo e finalmente ela dormiu.




Uma brisa gélida movimentava as árvores, que perdiam suas folhas e o farfalhar de seus galhos produzia som contínuo de atrito. A lua cheia que iluminava a cidade cedia lugar à névoa que, pouco a pouco, ficava mais densa.

As luzes da sirene de uma ambulância giravam silenciosas no meio da noite e atraíam uma multidão de curiosos para a fachada do prédio de tijolos à vista. Um veículo da polícia chegara e alguns homens entraram no prédio.

Luíza desceu de um automóvel e procurou conter seu desespero para encontrar Paloma no meio da multidão. Suas mãos frias transpiravam e ela nervosamente as esfregava na calça jeans.

Luíza, estou a horas fazendo sinal para você! Tá pensando que eu sou uma ilusão de ótica? – perguntou a moça que se aproximou.

- Paloma, graças a Deus – ela abraçou a amiga. – Desculpe, eu realmente não te vi.

- Oh, amiga, parece que não me conhece, não sabe que eu preciso brincar para amenizar a situação – esbravejou Paloma, tão nervosa quanto aflita.

- Será que a Tati está... – Luíza suspirou, deixando seu pensamento no ar.

- Não, claro que não, ela está bem, você vai ver.

- Estou com medo, Paloma. Quando o Fred me ligou, ele não parecia nem um pouco esperançoso...

- Olha lá, Luíza! Eles estão trazendo ela!

Elas aproximaram-se, com dificuldade, da ambulância e observaram com assombro Tatiana na maca com a máscara de oxigênio. Assim que ela foi transferida para o interior do veículo, o paramédico que a atendia dirigiu a palavra para as garotas:

Vocês a conhecem?

- Trabalhamos com ela – respondeu Luíza.

- Podem acompanhá-la até o hospital?

- Claro – disse Paloma, incentivando Luíza a embarcar na ambulância. As sirenes foram ligadas e o veículo partiu.

Ao chegar ao Hospital Municipal São José, Tatiana foi imediatamente encaminhada para exames. Enquanto Luíza e Paloma aguardavam, lembraram de telefonar para Paulo.

Você acha que ele vem, Paloma? Você sabe que agora ele não decide sobre a vida dele...

- Avisar não custa. E ele vem sim, sem dúvida.

Luíza assentiu e telefonou para o celular dele. Dentro de vinte minutos ele apareceu no corredor, perguntando sobre Tatiana. As garotas, entretanto, ainda não tinham notícias. Aflito, ele dirigiu-se ao balcão de atendimento, mas somente ficou irritado com a má vontade dos atendentes. Voltou ao local onde as garotas aguardavam, mas não sentou.

O que afinal aconteceu a ela? – indagou ele, enquanto andava de um lado para outro.

- Só sabemos que foi encontrada inconsciente e com sinais de agressão física – respondeu Paloma.

- Mas quando aconteceu?

- Depois das 19:30, acho.

- Mas o que ela fazia lá, sozinha a essa hora? – Sua voz soou agressiva e autoritária.

- Ah, você sabe – foi a vez de Luíza –, compensação de horas.

- A empresa e seu maldito banco de horas! – vociferou ele.

- Calma, Paulo! Não é hora para ficar xingando todo mundo – Paloma franziu a fronte, irritada com a atitude dele.

- Calem a boca vocês dois! Estão me deixando mais nervosa – exclamou Luíza.

Muitas horas se passaram até que um médico procurasse pelos parentes de Tatiana. Paulo imediatamente se identificou.

Amigo, você precisa ser forte – disse o médico, em tom impassível.

- Como assim?

- A paciente ficou sem respirar durante muito tempo e isso pode ter comprometido o cérebro, mas somente saberemos com precisão após o resultado do eletroencefalograma. No momento ela está na UTI. O meu palpite é de que ela sofra morte cerebral.

- Mas... – Paulo empalideceu subitamente. – O que houve com ela?

- Melhor você mesmo verificar com a polícia. Preciso ir.

O médico desapareceu no corredor sem dar maiores detalhes, enquanto Paulo olhou bruscamente para as garotas, que sofreram o mesmo choque. Ele imediatamente lembrou da ameaça de Elisabete, mas lhe custava crer que ela levaria ao extremo sua vingança. Uma sensação de culpa dominou-o naquele instante, porque fazia dias que ele estava esquivando-se de cumprir o acordo em troca da segurança de Tatiana. Lágrimas afloraram aos seus olhos e ele sentiu desprezo da própria falta de atitude. Luíza e Paloma, imaginando que aquela reação fosse exclusivamente por medo da morte de Tatiana, tentaram consolá-lo.

Vamos, Paulo, agora ela está nas mãos de Deus – disse Luíza, com voz suave, embora persuasiva.

- Sim, só nos resta esperar – ajudou Paloma. – Não há mais nada que possamos fazer aqui.

Sem contrariar, ele seguiu as garotas em direção da saída. Estava transtornado e por dentro seu corpo inteiro tremia. O ar frio da madrugada provocou um choque em seu organismo, que pareceu reagir. Então, ofereceu-se para levar as garotas para casa e conduziu-as para a pick-up Pajero. Assim que embarcaram, Luíza, que estava impressionada, não deixou de comentar sobre o automóvel.

Pertence a Elisabete. Tomei o carro emprestado por esta noite.

Elas calaram-se e seguiram primeiro até a casa de Luíza. Assim que a viu entrar, Paulo rumou para a casa de Paloma.

Paulo, posso fazer uma pergunta?

- Claro – respondeu ele, sem tirar os olhos da estrada.

- Você foi procurar a Tatiana depois que eu dei o endereço dos pais dela?

- Por quê?

- Porque a Tatiana não tem inimigos. Mas pode ter despertado o ódio de uma mulher.

- Não sei do que está falando.

- Não se faça de sonso, Paulo. Quem teria interesse em assassinar a Tatiana senão a sua esposa? – Paloma estava revoltada.

- Ela não é minha esposa! – ele exclamou. – Eu amo a Tatiana. Não vou suportar perdê-la – respondeu ele, estacionando o carro na frente da casa de Paloma.

- Desculpe, não tive intenção de te ofender. Mas se você ama mesmo a Tatiana do jeito que acabou de me dizer, então vai ter que enfrentar as coisas das quais você tem medo.

Ela desceu do carro e entrou. Paulo observou no horizonte os primeiros raios de sol despontando, mas a névoa continuava baixa. As últimas palavras de Paloma ecoavam em sua mente e ele finalmente se deu ao direito de chorar. Engatou a marcha e retornou pela estrada, disposto a voltar ao hospital. Novamente ele se sentiu responsável pelo crime, mas, ao contrário do que deixara acontecer a Evelin, decidiu não medir esforços para salvar a vida de Tatiana. Entretanto, sua mente entrara em turbilhão e ele não conseguia raciocinar para encontrar soluções. Já seu coração indicava que ele fosse ao encontro de Tatiana. De alguma maneira, ele sentia que havia um vínculo muito forte com ela e não queria perdê-la.