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Joinville, Santa Catarina, Brazil

CAPÍTULO 6 - PARTE III - SOPRO DE VIDA


Tatiana não respirava mais. Aos poucos sentia que o sangue parava de circular e seu corpo frio perdia quase toda a atividade vital. Seus olhos fixos perceberam que o teto se aproximava e subitamente ela soube que estava morrendo. “Deus, já chegou a minha hora? Então não tenho mais medo.” Ela não sentia dor nem angústia, apenas estava se sentindo levitar e alcançar o teto, que começara a girar, aumentando gradativamente a velocidade. De repente, ela teve a impressão de que despencara de um precipício e seu corpo antes imóvel voltara a se mexer.

Após alguns segundos ela compreendeu o que havia acontecido e agradeceu. “Deus me deu uma chance!” ecoava em seu cérebro atordoado, que recebia um filete mínimo de ar para continuar em atividade. Com muito esforço, ela virou-se de lado no chão, sem conseguir forças para levantar-se. Sua visão turva misturava o rosto de Elisabete com as imagens dos pés da mesa e as rodas da cadeira giratória. “O telefone!” Ela viu o fio do telefone e tentou esticar o braço para segurá-lo. “Vamos, está tão perto”. Finalmente alcançou o fio e puxou o aparelho que estourou no chão ao lado de sua cabeça. Suas forças restantes estavam abandonando-a, mas algo dentro dela queria lutar. “Vamos, você não pode morrer, eu preciso de você”. Então, um a um, ela digitou os números de um ramal, que prontamente atendeu.

- Alô – falou a voz no outra lado da linha. – Aqui é o Fred. Alô!

- So... corro – ela conseguiu murmurar.

- Alô? – Fred estava irritado e achou que era trote. – Fala de uma vez antes que eu desligue!

- Ta...ti...a...na...me...a...ju...de...


O esforço de falar findou suas forças e ela deixou cair seu braço e fechou os olhos. Novamente a sensação de leveza invadiu seu corpo e finalmente ela dormiu.




Uma brisa gélida movimentava as árvores, que perdiam suas folhas e o farfalhar de seus galhos produzia som contínuo de atrito. A lua cheia que iluminava a cidade cedia lugar à névoa que, pouco a pouco, ficava mais densa.

As luzes da sirene de uma ambulância giravam silenciosas no meio da noite e atraíam uma multidão de curiosos para a fachada do prédio de tijolos à vista. Um veículo da polícia chegara e alguns homens entraram no prédio.

Luíza desceu de um automóvel e procurou conter seu desespero para encontrar Paloma no meio da multidão. Suas mãos frias transpiravam e ela nervosamente as esfregava na calça jeans.

Luíza, estou a horas fazendo sinal para você! Tá pensando que eu sou uma ilusão de ótica? – perguntou a moça que se aproximou.

- Paloma, graças a Deus – ela abraçou a amiga. – Desculpe, eu realmente não te vi.

- Oh, amiga, parece que não me conhece, não sabe que eu preciso brincar para amenizar a situação – esbravejou Paloma, tão nervosa quanto aflita.

- Será que a Tati está... – Luíza suspirou, deixando seu pensamento no ar.

- Não, claro que não, ela está bem, você vai ver.

- Estou com medo, Paloma. Quando o Fred me ligou, ele não parecia nem um pouco esperançoso...

- Olha lá, Luíza! Eles estão trazendo ela!

Elas aproximaram-se, com dificuldade, da ambulância e observaram com assombro Tatiana na maca com a máscara de oxigênio. Assim que ela foi transferida para o interior do veículo, o paramédico que a atendia dirigiu a palavra para as garotas:

Vocês a conhecem?

- Trabalhamos com ela – respondeu Luíza.

- Podem acompanhá-la até o hospital?

- Claro – disse Paloma, incentivando Luíza a embarcar na ambulância. As sirenes foram ligadas e o veículo partiu.

Ao chegar ao Hospital Municipal São José, Tatiana foi imediatamente encaminhada para exames. Enquanto Luíza e Paloma aguardavam, lembraram de telefonar para Paulo.

Você acha que ele vem, Paloma? Você sabe que agora ele não decide sobre a vida dele...

- Avisar não custa. E ele vem sim, sem dúvida.

Luíza assentiu e telefonou para o celular dele. Dentro de vinte minutos ele apareceu no corredor, perguntando sobre Tatiana. As garotas, entretanto, ainda não tinham notícias. Aflito, ele dirigiu-se ao balcão de atendimento, mas somente ficou irritado com a má vontade dos atendentes. Voltou ao local onde as garotas aguardavam, mas não sentou.

O que afinal aconteceu a ela? – indagou ele, enquanto andava de um lado para outro.

- Só sabemos que foi encontrada inconsciente e com sinais de agressão física – respondeu Paloma.

- Mas quando aconteceu?

- Depois das 19:30, acho.

- Mas o que ela fazia lá, sozinha a essa hora? – Sua voz soou agressiva e autoritária.

- Ah, você sabe – foi a vez de Luíza –, compensação de horas.

- A empresa e seu maldito banco de horas! – vociferou ele.

- Calma, Paulo! Não é hora para ficar xingando todo mundo – Paloma franziu a fronte, irritada com a atitude dele.

- Calem a boca vocês dois! Estão me deixando mais nervosa – exclamou Luíza.

Muitas horas se passaram até que um médico procurasse pelos parentes de Tatiana. Paulo imediatamente se identificou.

Amigo, você precisa ser forte – disse o médico, em tom impassível.

- Como assim?

- A paciente ficou sem respirar durante muito tempo e isso pode ter comprometido o cérebro, mas somente saberemos com precisão após o resultado do eletroencefalograma. No momento ela está na UTI. O meu palpite é de que ela sofra morte cerebral.

- Mas... – Paulo empalideceu subitamente. – O que houve com ela?

- Melhor você mesmo verificar com a polícia. Preciso ir.

O médico desapareceu no corredor sem dar maiores detalhes, enquanto Paulo olhou bruscamente para as garotas, que sofreram o mesmo choque. Ele imediatamente lembrou da ameaça de Elisabete, mas lhe custava crer que ela levaria ao extremo sua vingança. Uma sensação de culpa dominou-o naquele instante, porque fazia dias que ele estava esquivando-se de cumprir o acordo em troca da segurança de Tatiana. Lágrimas afloraram aos seus olhos e ele sentiu desprezo da própria falta de atitude. Luíza e Paloma, imaginando que aquela reação fosse exclusivamente por medo da morte de Tatiana, tentaram consolá-lo.

Vamos, Paulo, agora ela está nas mãos de Deus – disse Luíza, com voz suave, embora persuasiva.

- Sim, só nos resta esperar – ajudou Paloma. – Não há mais nada que possamos fazer aqui.

Sem contrariar, ele seguiu as garotas em direção da saída. Estava transtornado e por dentro seu corpo inteiro tremia. O ar frio da madrugada provocou um choque em seu organismo, que pareceu reagir. Então, ofereceu-se para levar as garotas para casa e conduziu-as para a pick-up Pajero. Assim que embarcaram, Luíza, que estava impressionada, não deixou de comentar sobre o automóvel.

Pertence a Elisabete. Tomei o carro emprestado por esta noite.

Elas calaram-se e seguiram primeiro até a casa de Luíza. Assim que a viu entrar, Paulo rumou para a casa de Paloma.

Paulo, posso fazer uma pergunta?

- Claro – respondeu ele, sem tirar os olhos da estrada.

- Você foi procurar a Tatiana depois que eu dei o endereço dos pais dela?

- Por quê?

- Porque a Tatiana não tem inimigos. Mas pode ter despertado o ódio de uma mulher.

- Não sei do que está falando.

- Não se faça de sonso, Paulo. Quem teria interesse em assassinar a Tatiana senão a sua esposa? – Paloma estava revoltada.

- Ela não é minha esposa! – ele exclamou. – Eu amo a Tatiana. Não vou suportar perdê-la – respondeu ele, estacionando o carro na frente da casa de Paloma.

- Desculpe, não tive intenção de te ofender. Mas se você ama mesmo a Tatiana do jeito que acabou de me dizer, então vai ter que enfrentar as coisas das quais você tem medo.

Ela desceu do carro e entrou. Paulo observou no horizonte os primeiros raios de sol despontando, mas a névoa continuava baixa. As últimas palavras de Paloma ecoavam em sua mente e ele finalmente se deu ao direito de chorar. Engatou a marcha e retornou pela estrada, disposto a voltar ao hospital. Novamente ele se sentiu responsável pelo crime, mas, ao contrário do que deixara acontecer a Evelin, decidiu não medir esforços para salvar a vida de Tatiana. Entretanto, sua mente entrara em turbilhão e ele não conseguia raciocinar para encontrar soluções. Já seu coração indicava que ele fosse ao encontro de Tatiana. De alguma maneira, ele sentia que havia um vínculo muito forte com ela e não queria perdê-la.






CAPÍTULO 6 - PARTE II - O CRIME


Tatiana contara toda sua história e, no final, Natália abraçou-a.

- Amiga, você tem uma barra pesada pela frente, mas não desista, viu? Você merece toda felicidade do mundo. No final, tudo vai dar certo.

- Obrigada, Natália. Eu sabia que podia contar com seu apoio.

- Agora preciso ir, estou atrasada para o colégio. Tchau!

Assim que Natália saiu, Tatiana voltou ao trabalho.




Natália saiu da empresa e ficou surpresa quando viu Luíza e Paloma.

- Ué? Vocês não iam embora?

- A gente ia, sim, mas ficou batendo papo e nem viu o tempo passar – falou Luíza.

- Você nem imagina quem passou por aqui todo feliz, Natália – comunicou Paloma.

- Quem?

- O Paulo, aquele mala que ia se casar com a Tatiana. Ele sorriu e disse tchau, até parecia gente. Acho que o casamento fez bem pra ele – continuou Paloma.

- Pode ser – concordou Natália, rindo porque conhecia bem a razão que o transformara. – Olha, eu não quero ser estraga-prazeres, mas estou atrasada – alertou.

- Ah, meu Deus! – exclamou Luíza, apavorada. – Vou perder minha aula! Tchau, gente!

- Espera, eu vou com você – disse Natália, enquanto se despedia de Paloma.

As duas apressaram o passo para chegarem a tempo de tomar o ônibus no terminal norte e Paloma atravessou a rua, pois morava em uma casa que fazia frente com a empresa. Antes de abrir o portão, porém, ela viu uma sombra movimentar-se e ficou inquieta.

- Deve ser minha imaginação – resignou-se, entrando na casa.



Assim que ela sumiu, a pessoa que estava à espreita saiu de seu esconderijo e atravessou a rua, encaminhando-se para a porta que dava acesso ao interior da empresa. Girou o trinco, mas o sistema interno de travamento estava acionado. Naquele instante, viu a luz na cozinha do andar superior ser acesa e um funcionário colocar a cabeça para fora da janela.

- Está precisando entrar? – perguntou o rapaz.

- Sim.

- Espere um minuto que já estou descendo. – O rapaz levou um minuto para descer e, ao abrir a porta, olhou para o sujeito com uniforme e boné e se afastou para que ele pudesse entrar. – Você é novo por aqui? – perguntou antes que o instalador desaparecesse no corredor.

- Sim.

- Ah, eu também. Está no plantão noturno?

- Sim.

- Tchau. Bom trabalho. 

- Igualmente.




Tatiana olhou o relógio. Passava das 19:30 e ela suspirou. A pilha de ASLA’s para conferir parecia não ter diminuído e a moça começou a sonhar com a publicação de suas histórias. Ela amava escrever e, apesar de não ter nenhuma expectativa a curto prazo para conseguir a publicação, não desistia de seu sonho.

Seus pensamentos foram subitamente interrompidos pelo ranger da porta e ela virou-se para ver o instalador entrar. Antes que ele pudesse dizer algo, ela perguntou sobre blocos de ASLA.

O sujeito pigarreou e perguntou:

- Como?

- ASLA, blocos de ASLA. Não foi isso que veio buscar? – perguntou ela, inocentemente enquanto o observava.

- Sim.

- Quantos? Um ou dois?

- Ãh, um... não, não, dois.

- Eu vou buscar em um minuto. Enquanto isso, você pode colocar a sua produção na caixinha ali na estante.

Ela deu as costas para ir até o depósito, mas antes que pudesse dar cinco passos, sentiu um fio ser tencionado em torno de seu pescoço e não conseguiu mais respirar. Suas mãos imediatamente tentaram libertá-la do fio, porém, estava perdendo as forças à medida que lhe faltava o ar. Deixou-se desabar no chão, onde seu corpo convulsionava violentamente à procura de ar. Um espasmo atingiu o boné do instalador, que caiu no chão revelando uma cabeleira loira.

- Desgraçada! Isso vai te ensinar a não se meter comigo!

- Eli... sabete? Por quê...

Ela deu outra volta com o fio telefônico no pescoço de Tatiana até esta ficar completamente imóvel. Elisabete ajeitou o cabelo sob o boné e manteve o olhar fixo no corpo imóvel. Os olhos de Tatiana estavam saltados, a boca entreaberta, a pele começara a ficar arroxeada, o peito já não arfava como há um minuto. Sua rival estava definitivamente fora de ação e Elisabete sorriu com a vitória tão fácil. Ela saiu com tranquilidade, satisfeita por atingir seus objetivos.





CAPÍTULO 6 - PARTE I - BANCO DE HORAS


Após três semanas de férias, Tatiana voltou ao trabalho. Entrando no setor, apressou-se a abraçar Natália, com cuja amizade sempre pudera contar.

- Como está, Tati? 

- Eu estou tão feliz, Natália! Tenho uma coisa muito importante para dizer.

- Dá pra ver que você está mesmo feliz. E aí, “viajou” muito nas férias?

- Sim, mas desta vez eu fui até o céu – disse Tatiana, transbordando de felicidade.

- Ãh? Como assim? – Natália curvou as sobrancelhas diante do comentário enigmático. – Tati, você está muito misteriosa... o que aconteceu?

- Você nem imagina...

- Fala logo...

- Eu encontrei o...

Luíza e Paloma entraram na sala, interrompendo a conversa, e logo foram dando as boas vindas para Tatiana, que as abraçou amistosamente.

- Depois falamos – disse Tatiana a Natália, que aguardava a revelação. – Ei, meninas, a Valéria já chegou?

- Ainda não – respondeu Luíza. – Parece que ela vai participar de um treinamento na matriz hoje e amanhã.

Tatiana não ficou muito satisfeita com a notícia, porque desejava falar com a supervisora sobre a compensação de horas da semana que ela tirara para se recuperar do suposto choque emocional com o casamento e pretendia zerar seu banco de horas o quanto antes. Assim, resolveu conversar com Luíza e esta telefonou para Valéria. Dentro de instantes, Luíza informou que Valéria estaria na empresa antes do meio-dia devido à prorrogação da data do treinamento de líderes na matriz da Optical. Tatiana agradeceu e retomou seu trabalho, embora as atividades que ela realizava dentro da empresa estivessem muito distantes de seus ideais, pois ela sonhava em ser uma romancista de verdade e publicar as histórias que escrevia. Como mera auxiliar administrativa, ela se via na obrigação de contar com o que tinha. Suspirou e começou a avisar o corte de rede, telefonando para cada assinante dos 120 telefones apontados em seu relatório. Aquela atividade não lhe animava, pois, tal qual uma gravação, repetia a mesma informação tantas vezes quantas fossem necessárias.
À tarde, Tatiana encaminhou-se para a sala da supervisora e combinou o horário para compensação de horas. Quando passava das 18 horas, ela estava exausta. Em seu primeiro dia enfrentar uma jornada de trabalho de doze horas não era tarefa fácil.

- Tati, tem certeza de que quer ficar? – perguntou Paloma, enquanto desligava seu computador.

- Claro, já conversei com a Valéria e está tudo acertado para eu trabalhar até as 21 horas de hoje até quinta.

- Então tá, tchau.

- Eu também queria ficar para adiantar o serviço, Tati, mas você sabe, eu tenho curso – explicou Luíza.

- Não precisa me dar satisfações. Eu estou cumprindo a minha obrigação – respondeu Tatiana, com naturalidade.

- E você, Natália? – perguntou Luíza, observando que ela ainda continuava digitando. – Ainda não vai?

- Eu vou ficar mais um pouco, porque quero terminar esse lote – argumentou Natália, apontando para a pilha de documentos que aguardavam lançamento no sistema. – Tem algum problema?

- Não, mas não se esforce muito. Precisa prevenir a LER (Lesão por Esforço Repetitivo), tá bom?

- Tá legal.

- Tchau pra vocês. Vamos, Paloma!

Assim que as garotas saíram do departamento, Natália aproximou-se de Tatiana. 

- Que bom que você ficou – alegrou-se Tatiana, sorrindo para a amiga. – Eu preciso muito conversar com você. Senta aqui!

- Então me conta tudo, não esconda nada – brincou Natália.

Tatiana riu e começou a falar do amor que sentia por Paulo e narrou o encontro. Cada palavra fazia seus olhos brilharem e sua felicidade contagiou Natália, que sorria emocionada.

Enquanto isso, Luíza e Paloma seguiam pelos corredores na direção da saída, acenando para os companheiros dos outros departamentos que também encerravam o expediente. Pouco a pouco a empresa foi ficando vazia e às escuras. Na porta de saída elas encontraram-se com Valéria, que aguardava alguma coisa.

- Você, já de saída? Vai chover... – brincou Luíza, porque sabia que Valéria estava sempre ocupada com o cumprimento das atividades solicitadas pela matriz.

- O Ernesto vem me buscar... – explicou Valéria. – Olha ele aí!

- Hum... – fizeram as meninas, enquanto Valéria embarcava no automóvel que acabara de estacionar. – Vai namorar...

- É isso aí! Tchau, garotas! Cuidem-se.

Luíza e Paloma permaneceram algum tempo no pátio da empresa. Enquanto isso diversos instaladores deixavam os veículos no almoxarifado e se despediam delas, inclusive Paulo, que as cumprimentou alegremente, surpreendendo-as com sua atitude.

Do outro lado da rua e oculto pelas sombras, uma pessoa com uniforme da empresa acompanhava toda a movimentação. Olhou o relógio e resmungou:

- Que droga! Ela ainda não saiu.

Assim, continuou sua vigília, aguardando o momento oportuno para colocar seu plano em ação.


CAPÍTULO 5 - PARTE IV - SOB A SINFONIA DA NATUREZA


Algumas libélulas voavam sobre a água do riacho que borbulhava nas corredeiras. A mistura de vozes de pássaros, como sabiás, tico-ticos, quero-queros, rolas, eram subjugadas pelo forte canto de uma cigarra barulhenta que estendia sua voz como uma motosserra em atividade constante. As galinhas cacarejavam e um cachorro corria em torno do cercado, tentando estabelecer ordem às aves tagarelas.

Sentada em um banco de madeira na varanda da casa de enxaimel, estava Tatiana. Em seu colo, havia um gato que ela afagava, enquanto conversava com uma senhora de cabelos grisalhos, sentada ao seu lado no banco.

- Isso é tudo, mãe.

- Ele é importante pra você? – perguntou a mãe, em tom casual, depois que a filha havia terminado sua narrativa.

- Muito, mãe. Eu amo o Paulo. Nunca senti nada assim por ninguém.

A mãe ficou em silêncio, observando a filha. Ainda não havia se dado conta de que Tatiana agora era uma mulher e havia deixado para trás o ar infantil para conquistar o mundo e até desejar um homem. Escolhendo com cuidado as palavras para não magoar a filha, ela disse:

- Tatiana, penso que se você me contou tudo isto, você quer minha opinião e meu conselho.

- Claro, mãe.

- Não quero que você sofra, minha filha, e acho que este é um caso encerrado, pois aquele rapaz já casou e está vivendo com outra mulher. Não ensinei você a estragar casamentos...

- Mas, mãe – protestou Tatiana –, ele odeia aquela mulher. Ele foi obrigado a casar, porque senão ela acabaria com a vida dele.

- Eu acho que você foi inconsequente quando aceitou se casar, mesmo sem saber o que ele prometeu para aquela mulher.

Não adiantava argumentar e Tatiana resolveu caminhar para espairecer. Largou o gato no chão e saiu andando a passos largos na direção da rua, deixando a mãe falando sozinha. As lágrimas toldavam-lhe a visão e a ideia de nunca mais ver Paulo deixava-a ainda mais infeliz.

Tatiana tentava a todo custo convencer seu coração de que sua história com Paulo estava encerrada e que não adiantava nada sofrer por ele. Perdida em lembranças e imaginando diversas maneiras de superar sua crise emocional, ela continuou caminhando na estrada deserta. Parou em uma reta e lembrou quando antes existia a arrozeira de seu avô no lado esquerdo da estrada e o tanque de peixes no lado oposto. Olhou para as serras à sua volta e imaginou que mundo enorme poderia existir além daqueles dois picos que ficavam ao norte. Lembrou também quando seu pai contara que aquela estrada, Canela, tinha projeto para ser aberta e ligar o bairro Rio Bonito à Estrada do Pico na época do vereador Guilherme Zuege. Tatiana antes lamentara que o projeto nunca saíra do papel por causa da antiga balança rodoviária que existia na BR 101, pois como seu pai havia explicado, se a rua fosse mesmo aberta, os motoristas de caminhão desviariam a balança que ainda estava em atividade naquela época. Essa lembrança fez com que ela imaginasse novamente Paulo e Elisabete a uma pequena distância de sua casa e agradeceu que a rua ainda continuasse como há vinte anos. Novamente seu coração doeu e ela começou a soluçar.

Subitamente, o ronco do motor de um automóvel a tirou de seu devaneio. Ela procurou enxugar seu rosto para tentar distinguir o veículo que se aproximava e resolveu voltar para casa. Sua mãe sempre alertara para tomar cuidado com pessoas de má índole e Tatiana, lembrando-se das recomendações, sentiu medo e começou a correr.  

O automóvel a estava alcançando, mas ela não olhou para trás. Ficara confusa devido a seu descontrole emocional e entrou em pânico. Ouviu o veículo parar e alguém bater a porta e, cada vez mais desesperada, Tatiana embrenhou-se pela passagem entre os eucaliptos nas terras de seus pais para pegar um atalho e chegar em casa a tempo. Porém, esgotada pelo esforço físico, reduziu a corrida até parar embaixo de um pé de chorão, onde se apoiou. Uma brisa sacudia as árvores suavemente, e as folhas que caíam das diversas árvores formavam um tapete de folhas secas no chão.

- Tatiana! Sou eu, Paulo!

Ouvindo aquilo, ela olhou para trás e viu Paulo se aproximando. Suas pernas fraquejaram e ela sorriu, quase sem acreditar. A emoção de revê-lo arrancou novas lágrimas de seus olhos e Tatiana teve o impulso de se atirar nos braços dele. Paulo ficou imóvel diante dela, incerto sobre sua reação.

- Tatiana – sussurrou ele. – Eu te encontrei finalmente.

- Você estava me procurando? – indagou ela, enquanto sufocava a ansiedade e a esperança.

- Sim, eu precisava muito te ver. Só não imaginei que você iria fugir de mim.

- Desculpe – ela baixou a cabeça. – Não sei o que houve. Sabe como a minha imaginação é fértil. Eu me desesperei, achei que fosse um desconhecido. Aqui acontecem tantas coisas ruins...

- Então é ruim eu ter aparecido? – Em sua pergunta havia um tom de decepção e tristeza.

- Não, nunca! – Tatiana ergueu seus olhos e fitou-o, revelando os olhos vermelhos e inchados.

- Andou chorando? – perguntou Paulo, tomado de uma súbita preocupação. – Acho que é culpa minha, não é? 

- Mais ou menos... 

- O que foi que eu fiz de errado?

- Nada. Eu é que estou me iludindo... 

- Por quê? 

- Ai, Paulo, eu não aguento mais. Eu te amo e dói muito saber que te perdi...

Ao escutar a revelação, a face dele contraiu-se em um sorriso. Ele abriu os braços e ela o abraçou com força, encostando a cabeça no peito dele. Riso e choro misturaram-se.

- Tatiana, meu amor... eu fui tão egoísta com você, tão covarde. Estava tão preocupado comigo mesmo que, quando fui capaz de enxergar seu amor por mim, pensei que já era tarde demais.

- Por favor, Paulo, não me deixe... não sei mais viver sem você.

Paulo beijou-a pela primeira vez e ela se rendeu, indefesa. De repente, os segundos pareceram horas e seus corpos giravam ao sabor da brisa que refrescava suas peles ardentes. Aves, em bandos, cantavam para eles, e junto do farfalhar das árvores e dos tímidos estalidos de gravetos e folhas secas, compunham uma sinfonia inigualável. Ao final dos últimos acordes, um gemido silenciou a mata.

Tatiana abriu os olhos e sorriu, após um suspiro profundo. Acomodou sua cabeça sobre o braço dele e fitou-o. Paulo alisou o rosto dela, deslizou os dedos pelos lábios, afagou os cabelos e girou-a para cima dele, provocando uma chuva de folhas secas.

- Te amo, te amo, te amo... – repetiu ele, beijando-a diversas vezes e fazendo-a soltar risinhos de contentamento. – Hoje sou o homem mais feliz deste mundo!

Durante longo tempo permaneceram em silêncio, aproveitando o momento. Entretanto, os pensamentos aguçados convergiam para a mesma incerteza. Paulo reclinou o corpo de encontro às raízes do chorão e Tatiana ajoelhou diante dele. Seu sorriso aos poucos foi se apagando enquanto ela traduzia seus sentimentos em palavras:

- Como vai ser daqui pra frente? Você tem suas obrigações para cumprir...

Ele não respondeu, pois a realidade o machucava e a insegurança se projetava em seu olhar. Compreendendo o silêncio, Tatiana levantou-se e ficou de costas para ele, enquanto arrumava suas roupas. Inconscientemente ela se preparou para se despedir, mas amá-lo pelo menos uma vez já a confortava. Paulo, entretanto, a enlaçou pela cintura, beijou seu rosto e balançou seu corpo como se a estivesse ninando. Ela deixou-se levar pelo embalo para sentir-se mais próxima dele.

- Agora que eu sei que você me ama, sou capaz de tudo. Não tenho medo de mais nada.

- Mas e a Elisabete? Ela agora é sua esposa, não é? – Tatiana deixou escapar.

- Somente no papel.

- Como assim? – Ela ficou confusa. – Já faz tantos dias que você assinou seu casamento...

Ele explicou que não tinha consumado o casamento porque amava Tatiana, que sorriu agradecida e beijou-o desejando-o novamente. Mas sabia que não podia tê-lo, porque ele pertencia a Elisabete. Apesar de realista, ela não se rendeu ao sofrimento e procurou abraçá-lo para sentir seu calor mais uma vez. Paulo observou no sorriso dela um misto de encantamento e tristeza. Naquele momento ele jurou para si mesmo que enfrentaria Elisabete para viver com Tatiana.

Eles despediram-se e Tatiana permaneceu imóvel até vê-lo sumir em meio à vegetação. Tomou o caminho de casa totalmente enternecida com as recordações daquele momento único.



Paulo voltou para casa e atirou-se sobre a cama, onde permaneceu por muito tempo pensando em Tatiana. Ainda podia sentir o cheiro dela e a maciez do corpo que o recebeu sem nada exigir em troca.

Subitamente, o motor de um caminhão guincho atraiu sua atenção e Paulo foi até a sacada onde viu um veículo sendo transferido do reboque para a garagem. Quando voltou para dentro, Elisabete surgiu na porta semi-aberta.

- Apanhe isto! Seu presente acabou de chegar – disse ela, lançando para ele as chaves de automóvel que ele agarrou no ar. Imediatamente imaginou que ela pretendia conquistá-lo com bens materiais e sorriu, irônico, pois não se corromperia por causa de um presente.

- Espero que goste de pick-up. Escolhi uma Pajero para combinar com seu estilo – continuou Elisabete, pretensiosa.

- Estilo? Você se refere a playboy ou gigolô? É esse o estilo que está querendo que eu interprete? – argumentou ele, sarcástico.

Cada encontro com Elisabete culminava em explosão de sensibilidade, mas Paulo não chegara, desta vez, a nenhum rompante de ódio. Pelo contrário, manteve-se calmo e distraído, o que enfureceu a mulher.

- O que há com você? – gritou ela, no ápice de sua paciência. – Você está brincando comigo e eu não admito isso! Nós casamos, temos um contrato, e você não chegou a cumprir os termos desse acordo.

- Peça o cancelamento do matrimônio, então. Você mesma cobrou que eu não cumpro meu papel de homem, está lembrada? – A calma impertinente dele irritava-a cada vez mais. Ele levantou-se tranquilamente da cama e postou-se bem à frente dela. – Se você ainda não percebeu, eu não tenho a menor vocação para homem-objeto.

Ela deu uma bofetada no rosto dele, que se contraiu em um sorriso desafiador. Trêmula de ódio, Elisabete lançou um olhar fulminante que Paulo sustentou.

- Eu amo outra mulher, Elisabete. Tenho nojo de você! Não há contrato de casamento nenhum deste mundo que me faça ir pra cama com uma criatura desprezível como você!

- Você tem outra mulher, Paulo? Diga quem é ela, para eu acabar com a vida dela! – Elisabete não conteve seu ódio, sua derrota, seu orgulho corroendo-a de inveja.

- Você está blefando, Elisabete – continuou Paulo, baixando o tom de voz e rindo da mulher enfurecida à sua frente. – Você perdeu, entendeu? Perdeu! Deixe-me ir, não quero nada com você.

- Somente sobre o meu cadáver! Vou conseguir você a qualquer custo! E quanto à mulher que você diz que ama, vou dar uma lição da qual ela jamais se esquecerá! Eu até já sei de quem se trata. É aquele noivinha que você inventou para fugir do compromisso comigo. Como é mesmo o nome dela?

Paulo subitamente empalideceu e perdeu a voz. Havia provocado a ira de Elisabete, mas não desejava envolver Tatiana naquela discussão. Procurou mudar a expressão e parecer convincente de que Elisabete estava enganada. Apesar de sua tentativa, a mulher já havia lido em seus olhos que estava certa. Com um sorriso vitorioso saiu do quarto e dirigiu-se ao escritório para fazer alguns contatos.

Paulo ficou sentado ao pé da cama, temendo pela segurança de Tatiana. Depois, pensou melhor e resolveu negociar para amenizar sua fúria. Enojado com a própria ideia, ele seguiu até o escritório.

- Elisabete, quero falar com você. Deixe Tatiana fora disso e eu cumpro com meu papel de marido.

- Até que enfim estamos falando a mesma língua! – respondeu ela, aparentemente satisfeita com o acordo. – Muito bem, ela não fará mais parte de nossas vidas. Quanto as suas responsabilidades, acho que podemos começar...

Paulo engoliu em seco e reagiu:

- Primeiro quero ter certeza de que você vai cumprir a sua parte no acordo.

Dito isto, ele se retirou do escritório, apanhou a chave do veículo de trabalho e saiu da casa. Ela girou na cadeira, observando-o através da janela e, sorridente, pronunciou:

- Pode apostar que eu farei a minha parte, meu querido.


CAPÍTULO 5 - PARTE III - NOVA INVESTIDA

Apesar de ter de cumprir as exigências impostas pelo contrato, Paulo não abandonou sua profissão. Procurava concentração total em seu trabalho para esquecer que era um prisioneiro da própria covardia.

Ao chegar na casa de itaúba, que agora ele sabia ser um chalé de luxo, ele ia diretamente para a edícula, pois não suportava a ideia de se encontrar com Elisabete. Mas esta insistentemente o lembrava de suas obrigações conjugais. Paulo, entretanto, a desprezava.

Certa noite, após mais uma tentativa frustrada, Elisabete mudou de estratégia. Usou palavras vulgares para caracterizar a atitude dele em rejeitar uma mulher como ela. 

- Você não é nada, não é um homem à altura para mim. Acho que me enganei quanto às suas preferências sexuais.

Paulo, já saturado das repetidas cobranças, ressentiu-se com o julgamento e resolveu provar que, ao contrário das suposições dela, era um homem. Agiu com brutalidade, porque estava insano de ódio. Chegou a rasgar a roupa dela e imobilizou-a na cama.

Cada vez mais perto de celebrar a vitória, Elisabete instigava o ódio dele ao ferir seu orgulho. Ela, apesar de estar sendo dominada, incentivava a continuidade do ato desvairado que consumaria seu casamento.

- Eu não costumo me enganar a respeito das coisas em que aposto. Por isso, apostei em você – afirmou, quando estava perto de realizar seus anseios.

Contudo, Paulo foi interrompido por um instante de lucidez e controlou-se a tempo de se arrepender pelo resto da vida. Puxou Elisabete de sua cama e empurrou-a para fora do quarto, atirando também as roupas que ele próprio rasgara. Apesar dos protestos da mulher, trancou a porta para recuperar o controle da situação.

Chovia forte naquela noite e ele foi até a sacada do quarto para tentar conter a fúria e o desejo insano de matar Elisabete e fugir. Paulo sentiu repulsa de si mesmo e viu que nunca mais seria o mesmo. No lugar do rapaz digno e ético, uma fera indomável estava preparada para atacar. 

Inspirou o ar frio da madrugada e pensou em Tatiana, voltando alguns dias no tempo. Estava tão preocupado consigo mesmo que não notara a tristeza que havia no olhar dela no dia do suposto casamento. Refletiu o quanto fora egoísta e quando finalmente compreendera que Tatiana o amava, Elisabete apareceu, atirando por terra todos os seus planos.

Depois de buscar as recordações, Paulo fechou as venezianas e deitou-se na cama, planejando encontrar-se com Tatiana. Precisava desesperadamente dela e a buscaria no fim do mundo se fosse preciso.

 

No dia seguinte, Paulo dirigiu-se ao setor de administração para saber notícias de Tatiana. Quando entrou no departamento, a primeira pessoa que encontrou foi Valéria, que o atendeu com visível desprezo, porque acreditara cegamente nas mentiras de Elisabete. Ele então pediu blocos de ASLA e Valéria pediu para Paloma apanhar no estoque.

- Onde está a Tatiana? – perguntou quando Paloma lhe entregou os blocos.

- Ela pediu alguns dias de folga e foi para a casa dos pais em Pirabeiraba – respondeu a moça, tomando cuidado para não ser ouvida pela supervisora.

- Onde exatamente? – Paulo insistiu.

Paloma, então, apanhou uma agenda e copiou o endereço que Tatiana informara.

- Está aqui, Paulo. – Paloma colocou o bilhete sob uma ASLA. – Está faltando assinatura do cliente.

- Obrigado, Paloma. Eu devolvo a ASLA amanhã mesmo.

Ele apanhou a ASLA e saiu satisfeito. Luíza e Natália observaram a cena e leram nos lábios de Paloma a palavra Tatiana.

- Tipos com esse caráter não deveriam trabalhar nesta empresa – censurou Valéria, sem perceber os olhares compreensivos das funcionárias.