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Joinville, Santa Catarina, Brazil

CAPÍTULO 4 - PARTE I - O CONTRATO DE CASAMENTO

Sozinha na pequena casa que alugara no bairro Costa e Silva, Tatiana redigia uma trama policial que exigia todo seu raciocínio. Concluiu o capítulo e resolveu parar, porque só então sentira a dor provocada pela caneta que afundara em seu dedo médio. “Lutar por um sonho exige seus sacrifícios”, pensou ela, massageando o calo duro. Depois olhou os raios de sol que penetravam pela janela e decidiu sair para curtir a tarde de domingo do gostoso dia de outono. Assim, apanhou sua bicicleta e pedalou muitos quilômetros, apreciando todos os detalhes.

Depois de uma hora mais ou menos, ela chegou ao parque infantil que ficava próximo do campus universitário no bairro Bom Retiro, onde dezenas de crianças se divertiam e resolveu parar para descansar antes de voltar para casa. Apoiou a bicicleta em um banco e olhou ao redor. Não havia adultos por perto e Tatiana sentiu uma vontade incontrolável de se misturar às crianças. Lembrou de Paloma naquele instante enquanto refletia se seguiria seu impulso, pois a amiga sugeria que Tatiana ouvisse seu coração. “Se o coração nunca se engana, então é isso que ele quer me dizer?” Finalmente ela tomou a decisão e foi até um grupo de meninas que brincavam de pega-pega, onde perguntou se podia brincar. Sorriu após ser aceita no grupo, voltando no tempo e, a não ser pelo tamanho, era novamente uma criança de cinco anos, despreocupada e feliz.




Paulo estava apreensivo quanto à própria reação quando chegou na casa de Elisabete, porque era o primeiro encontro cara-a-cara depois de toda a trapaça armada por ela.

Entretanto, agindo com naturalidade, ela o atendeu, levando-o até um cômodo da casa, onde funcionava um pequeno escritório. Sentado à frente da escrivaninha, um homem vestido formalmente segurava uma pasta de couro.

- Este é o Dr. Augusto Campos, meu advogado – apresentou Elisabete, observando divertida a expressão interrogativa que dançava nos olhos de Paulo. – Ele está aqui para oficializar nosso contrato de casamento.

- Contrato de casamento? – Paulo enrugou a fronte, incapaz de acreditar. – Do que está falando?

- Você sabe muito bem. Você aceitou viver comigo e não irá se arrepender. Eu farei minha parte e trouxe o Dr. Augusto aqui para garantir que você faça a sua.

- Não precisa disso, Elisabete. Já dei minha palavra que...

- Palavras faladas dançam ao sabor da brisa, meu querido. Elas podem mudar de direção a qualquer instante. Palavra no papel, com reconhecimento de assinatura não! Está ali alegando a verdade incontestável do contrato. – Ela percebeu que Paulo se surpreendia cada vez mais e continuou: – Não fique assim, você vai acabar se acostumando, porque terá muitas vantagens e não precisará mais trabalhar.

- Mas eu gosto de trabalhar honestamente. Não nasci para ser gigolô de mulher alguma.

- Não veja as coisas por este prisma. Você será meu protegido.

- Protegido coisa nenhuma! – Desta feita, ele reagiu energicamente. – Entenda uma coisa, Elisabete: eu não amo você, pelo contrário, te odeio e te desprezo. Como acha que poderemos viver sem amor?

- Amor? – Elisabete fez sinal para o advogado e juntos riram sonoramente. Paulo continuou sério, imaginando o que havia dito de tão engraçado.  – Admira-me você, um homem sarado, jovem, atraente, falar de amor. Isso não existe. O que existe e vale à pena é o interesse.

- Está enganada, Elisabete. Eu mesmo já vivi o amor com uma pessoa que...

- Ah, é? – interrompeu ela. – Eu já sei que você foi casado com Evelin Cavichiolli durante quatro anos, mas ela nunca foi capaz de te dar um filho e morreu vítima de sua obsessão em engravidar.

Paulo sentiu a sala girar ao ouvir o nome de sua esposa e de informações tão pessoais. Ele estava disposto a ceder à chantagem daquela mulher sem escrúpulos em troca da liberdade, mas por um minuto, teve o ímpeto de desistir de tudo e voltar para a cela fétida da delegacia.

- Como sabe tanto sobre minha vida? – perguntou ele, respirando irregularmente.

- Solicitei ao Dr. Augusto uma investigação minuciosa sobre você depois daquela reação excêntrica em nosso primeiro encontro. – Ela apanhou o dossiê e estendeu-o para Paulo, que apanhou o documento e leu seu nome na capa. – Está tudo aí: datas, registros, certificados escolares, relacionamentos amorosos, participação religiosa... – Ela fez uma breve pausa. Paulo empalidecera e ela aproveitou para lançar o desafio, pois sabia que após a morte da esposa, ele jamais voltara a tocar seu violão. – A propósito, quero que você toque para mim algum dia destes.

- Eu só toco para pessoas que merecem – argumentou ele, perplexo. Ele atirou o dossiê contra a escrivaninha e fungou como se estivesse chorando. O comentário de Elisabete atingira seu ponto fraco. Ele pigarreou, como era de seu costume quando ficava nervoso e perguntou: – Mas como conseguiram tudo isso?

- Eu e o Dr. Augusto temos nossos meios, não é?

Paulo viu o gesto discreto de Augusto, que indicava dinheiro e deduziu que eles usaram o mesmo artifício para convencer o delegado a retirar as acusações e ainda limpar seu nome diante da sociedade. Como se pudesse ler seus pensamentos, Elisabete prosseguiu:

- O delegado é boa pessoa. Tem filhos pequenos para criar. As contas estavam atrasadas. Um vírus de computador apagou algumas fichas criminais, inclusive a sua. Sabe, as palavras até têm algum valor nestes casos.

- Não posso participar desse carnaval de corrupção!

- Chega de explicações. Dê a ele os papéis, Dr. Augusto.

Augusto tirou os documentos de dentro da pasta, retirou uma caneta banhada a ouro e sinalizou os locais onde Paulo deveria assinar. Este, entretanto, sofreu uma apatia momentânea e não teve forças para tomar qualquer iniciativa.

- Dê-me pelo menos uma chance de ler com calma – pediu ele.

- O que acha, doutor? – Este assentiu e Elisabete permitiu que Paulo levasse os documentos. Ele colocou os papéis no bolso da camisa e já ia se retirando do escritório, quando foi novamente chamado por ela. Sem virar-se, ouviu a voz ameaçadora de Elisabete: – Espero que não seja tolo a ponto de jogar os papéis no lixo. Se isso acontecer, em vez de contrato de casamento, você terá documentos criminais esperando por sua assinatura.

Paulo nada falou e deixou a casa. Sua mente estava em turbilhão e seu corpo enfraquecido. Embarcou no primeiro ônibus que passou e só se deu conta quando o veículo estacionou no terminal João Colin. Embarcou então na linha Bom Retiro e novamente perdeu a noção de tempo e espaço. Quando percebeu, já havia deixado passar o ponto e o ônibus estava chegando à Univille. Sem muito pensar, Paulo desembarcou e inconsolável pelo desequilíbrio emocional que Elisabete criara, se sentou no banco onde uma bicicleta estava encostada e curvou o corpo para frente.

Uma cena curiosa fez com que Paulo esquecesse momentaneamente o desfecho que sua vida estava recebendo. Havia uma moça brincando na piscina de areia juntamente com pelo menos dez crianças com idades equivalentes a quatro ou cinco anos. Ela usava roupas esporte, estava com os cabelos desgrenhados a cair em seu rosto, e os tênis haviam sido descuidadamente jogados do lado de fora da piscina. As crianças a enchiam de areia, tentando moldar bonecos em seu corpo e a moça se divertia, soltando sonoras gargalhadas. A situação cômica trouxe um sorriso aos lábios dele.

Naquele instante, a moça ergueu a cabeça e puxou os cabelos para trás, sorrindo com ar de gratuita felicidade. O olhar dela desviou-se para a bicicleta e depois para Paulo e, surpreso, ele viu tratar-se da moça que trabalhava na área administrativa do Consórcio.

Por sua vez, Tatiana, ao se deparar com ele, sentiu um calor no rosto, notou suas roupas sujas de areia e ficou constrangida. E mais que isso, sentiu medo dele, apesar de acompanhar que Elisabete se enganara ao acusá-lo. 

- Acho que você está em apuros – disse ele, com um sorriso conciliador, enquanto aproximava-se da piscina de areia.

- Acho que sim – respondeu Tatiana, levantando-se e provocando um murmúrio de lamento entre as crianças.

Ela saiu da piscina de areia e abaixou-se para calçar os tênis, tomando o cuidado para não perder Paulo de vista. Em seguida, aproximou-se do banco onde estava a bicicleta e sacudiu a areia da camiseta.

- Nunca pensei que pudesse ver você desse jeito – disse ele, voltando a sentar-se.

- Que jeito? – logo perguntou, desconfiada.

- Assim, despreocupada, brincando.

- E suja, você quer dizer.

- Suja? – Ele fez um gesto de surpresa. – Você é a calamidade pública em pessoa!

Tatiana fez um esforço para ficar séria e zangada com ele, mas não conseguiu. Um pouco mais tranquila, ela resolveu sentar-se ao lado dele e observou a expressão séria que surgira em seu rosto.

- Sabe, você salvou o meu dia – falou ele, enquanto torcia as mãos nervosamente.

- Eu? Por quê? – Ela enrugou a fronte, demonstrando surpresa.

Ele calara-se e Tatiana percebeu que ele ficara inseguro. Naquele momento, ele demonstrava ser a criatura mais frágil do mundo e ela não encontrou vestígios de seu temperamento agressivo. Imaginou como ele sofrera com a acusação, mesmo sendo inocente e não encorajou o diálogo. Em vez disso, levantou-se para pegar a bicicleta.

- Não vá embora – pediu ele, gentilmente. – Eu não respondi sua pergunta porque acabei me perdendo em uma viagem alucinante. Desculpe.

Como autora do Manual da Viagem, Tatiana não deixou de se impressionar com o comentário e voltou a se sentar. Sem cerimônia, ela começou a falar sobre suas criações, seus anseios, suas metas. Descreveu, com orgulho, os personagens que ganhavam vida em suas narrativas ficcionistas. Afirmou que a pessoa que se aventurasse a ler suas histórias se envolvia naturalmente a cada página. Também admitiu a forte tendência ao maniqueísmo.  Ela acabou sua narrativa e voltou a pensar em como se enganara com a personalidade de Paulo, pois ele a ouvia com atenção e interesse.

Enquanto a ouvia, Paulo recordava o momento em que a encontrara suja de terra, brincando com as crianças. Ficou tão encantado que esquecera o ódio e o rancor que sentia por ela.

- E você? O que tem feito da vida? Ouvi dizer que a Integração vai te contratar novamente – perguntou Tatiana subitamente, imaginando uma resposta casual. Porém, ela se arrependeu de ter perguntado, pois sentiu que ele se fechara outra vez e lamentou por ter sido tão especulativa.

Paulo, ao contrário do que ela esperava, contou toda sua história desde o dia em que conhecera Evelin até o dia de sua morte. Falou da solidão e do remorso, do estresse com o trabalho e ainda pediu desculpas por ter sido grosseiro com Tatiana nas vezes que a encontrava. Além disso, narrou seu envolvimento com Elisabete.

- E foi por essa razão que disse que você salvou o meu dia – finalizou.

- Que coisa mais absurda! Quem ela pensa que é? – Tatiana ficara revoltada. – O que pretende fazer agora? 

- Primeiro tenho que tentar entender essa porcaria de contrato – disse ele, retirando o documento do bolso.

Tatiana desdobrou o papel, mas não compreendia muito bem a linguagem jurídica. Apenas entendeu que o contrato assemelhava-se a um contrato normal de trabalho, com a diferença de que Paulo estaria recebendo dinheiro em troca de préstimos que Tatiana preferiu não ler em voz alta..

- Ou assino essa droga ou vou para a cadeia. Você sabe o que vão fazer comigo lá apesar de eu não ser culpado?

- Posso imaginar.

- Eu deveria saber que esta seria sua resposta. Esqueci que estou diante de uma escritora.

O comentário dele soou sarcástico e provocativo e Tatiana ressentiu-se. 

- E eu devia ter imaginado que cedo ou tarde você iria se revelar o grosso que é!

Ela levantou-se de um salto e embarcou na bicicleta, mas antes de tomar impulso para pedalar, Paulo agarrou fortemente seu braço. Os olhos de ambos se encontraram e Tatiana sentiu-se hipnotizada. Aquele instante pareceu eterno. Ela desviou os olhos para a mão que segurava seu braço e Paulo soltou-a lentamente, arrependido por tê-la magoado.

- Tatiana, me ajude.

-Se quiser um conselho – respondeu ela, calmamente –, ou melhor, uma recomendação, acho que você devia engolir esse orgulho e aceitar seu emprego de volta. Seu contrato de casamento não o proíbe de exercer uma profissão.

Em seguida, Tatiana se foi, deixando Paulo à mercê de seu destino.


CAPÍTULO 3 - PARTE IV - A DENÚNCIA


Paulo testou o telefone de Elisabete na central e não encontrou defeito algum. Também fez uma preventiva no jump e testou os pares e não detectou nenhum dano. Seguiu para a casa da assinante, imaginando que o defeito estaria em seu aparelho.

- Você veio afinal – disse ela, com a insolência habitual.

- Bom dia, Elisabete – cumprimentou ele, casualmente. – Posso dar uma olhada no seu aparelho telefônico?

- Claro, entre.

Ele testou o aparelho e aparentemente não havia qualquer defeito. Informou Elisabete a respeito e pediu para que ela telefonasse novamente para a Central de Atendimento ao Cliente caso o defeito voltasse a acontecer.

- Não precisa ser tão profissional, Paulo. Fique mais à vontade e relaxe.

- Durante o horário de trabalho eu tenho a obrigação de ser profissional. Seria anti-ético desrespeitar a regra. Não tenho direito de ficar à vontade e nem posso relaxar, porque tenho metas a serem cumpridas, entendeu? – respondeu em tom seco, embora educado, para evitar que ela, na condição de assinante, o acusasse por mau atendimento.

- Tudo bem, mas obrigada por verificar o defeito que eu inventei.

- Como assim, inventou?

- Sim, inventei. Eu precisava de um motivo para falar com você novamente.

- Você me fez perder todo esse tempo e ainda tem a audácia de admitir que inventou? – Ele procurou controlar-se, mas sentiu o sangue ferver. 

- E tem mais – continuou ela, rindo zombeteiramente. – Não preciso de Central de Atendimento, porque já tenho o número de seu próprio celular.

- Não acredito em você.
Enquanto o observava desafiadoramente, Elisabete digitou algumas teclas em seu celular e o celular de Paulo tocou no mesmo instante. Ele curvou as sobrancelhas e hesitou em atender.

- Atenda – encorajou ela. Ele apertou um botão e escutou a voz dela. – Acho bom você rever seus conceitos.

- Como descobriu meu número?

- Serviço de busca automática, meu querido. O Siga-me é muito útil.

Paulo poderia perder seu emprego caso a administração da empresa descobrisse que ela possuía o número do celular dele, porque era contra as regras da empresa. Ninguém nunca acreditaria que ele estava caindo em uma armadilha. Respirou profundamente e saiu da casa. No carro, ele pensou o que aquela mulher pretendia ao envolvê-lo naquele jogo sujo.

Elisabete esperou que ele saísse e só então prosseguiu com sua estratégia, discando para a Central de Atendimento.

- Bom dia, Central de Atendimento ao Cliente – atendeu Tatiana, já que Paloma estava ocupada com outra ligação.

- Aqui quem fala é Elisabete Schroeder e eu tenho uma denúncia a fazer contra um instalador de vocês, que veio até minha casa me ameaçar. O nome dele é Paulo Alves.

Tatiana engoliu em seco. Outra vez Paulo se metera em confusão. A assinante parecia segura do que dizia e Tatiana imaginou tratar-se de uma grosseria ou coisa semelhante.

- Em que posso ajudar, Elisabete?

- Quero entrar em contato com o representante legal de sua empresa, pois desejo abrir um processo contra este funcionário, a minha pessoa na condição de vítima de atentado ao pudor.

Tatiana ficou tonta: “Atentado a o quê?”.

- Quando aconteceu?

- Agora a pouco, por volta das 10h30min.

- Aguarde um minuto, por favor.

Tatiana apertou no aparelho de telefone a tecla de função sigilo, respirou profundamente e explicou a situação para Paloma, que acabara de desligar o outro aparelho. Esta arregalou os olhos e sacudiu a cabeça, tentando entender a informação que recebera.

- O que eu faço, Paloma? – Tatiana estava pálida.

- Pede pra ela ligar na central e entrar em contato com o Sr. Laércio – instruiu Paloma.

- Alô, Elisabete? – disse Tatiana, assim que tirou o aparelho do sigilo –, peço que ligue no telefone de nossa central e entre em contato com o Sr. Laércio, que é nosso diretor geral. Certamente ele irá ajudá-la.

- Ah, sim. Eu já tenho o número, obrigada.

Assim que desligou, Tatiana saiu da sala para buscar água, porque ficara impressionada com a ocorrência. Como já sentisse uma certa antipatia por Paulo, julgou-o no mesmo instante.


Enquanto instalava um telefone, Paulo ouviu o seu celular e verificou que era seu supervisor. Atendeu prontamente.

- Paulo, quero que você venha urgente na sala do Mauro.

- Não posso. Estou no meio de uma instalação e...

- Dê um jeito, mas venha agora mesmo! – ordenou Francisco, desligando o aparelho sem esperar resposta.

Paulo ligou para a plataforma de serviços e jogou o telefone na pendência, recolheu o material e seguiu imediatamente para a empresa, já esperando o pior.

- Droga! Bela hora para perder meu emprego – praguejou, enquanto conduzia o veículo.

Ele chegou na recepção e Andréia disse para subir à sala do coordenador imediatamente. Após subir as escadas, entrou na sala, onde se encontravam Francisco, Mauro e Laércio. Seus rostos demonstravam nitidamente que havia algo sério no ar.

- Onde esteve hoje por volta das 10h30min? – perguntou Mauro, com voz áspera.

- Eu estava fazendo o meu serviço – respondeu Paulo, inocentemente.

- Ora, vamos! – exaltou-se Francisco. – Que raio de resposta é esta! O que o Mauro quer saber é onde você esteve e não o que esteve fazendo, entendeu?

Paulo pensou um pouco e procurou se controlar, pois se irritar com seu supervisor poderia agravar ainda mais sua situação.

- Eu estive tirando um defeito do telefone de uma assinante que ligou no 0800. O nome dela era...

- Elisabete Schroeder – pronunciou Mauro, pausadamente. Paulo teve um sobressalto e seu gesto de surpresa foi mal interpretado pelos três homens.  

- Você sujou o nome de nossa empresa, Paulo – a acusação fora feita pelo Sr. Laércio, que olhava para o instalador com visível repugnância. – Além de demiti-lo por justa causa, a empreiteira vai processá-lo por danos morais.

- Processado?! Mas por quê?

- Não seja hipócrita, cara!

Paulo ouviu a exclamação incontida e foi dominado e traído por sua incapacidade de auto-controle.

- Eu não fiz nada! – defendeu-se, ainda sem compreender o real motivo das acusações. – Não sei o que aquela desgraçada disse a vocês, mas é mentira. Ela armou pra cima de mim...

- Cale-se e dê o fora daqui antes que eu me arrependa e chame a polícia! – ordenou Laércio, sem dar a Paulo uma oportunidade para se defender.

Após ser expulso da sala, Paulo desceu cambaleante até a recepção, onde se encontrou com Tatiana, que olhara desconfiada para ele. O olhar que ela lançou acusava, julgava, condenava, e tal atitude o deixou perturbado. Já na rua, ele ligou para Elisabete.

- Sua maluca! O que pretende me mandando pra cadeia? 

- Era essa atitude que eu deveria esperar de um maníaco sexual mesmo. – Elisabete choramingou, como se realmente tivesse enfrentado a situação que criara e denunciara. – Acha pouco o que fez comigo?

- Mas você sabe perfeitamente que eu não fiz nada! O que foi que disse a eles?

- Está tentando me ameaçar agora que contei toda a verdade?

Paulo parou no meio da rua e esfregou o rosto para tentar se tranquilizar. Voltou a falar com ela:

- Eu não faço ideia do que está acontecendo, mas é bom você tratar de consertar tudo.

- Vou dizer o que é bom, seu psicopata. Pare de me ameaçar porque a polícia acabou de instalar uma escuta telefônica nesta linha.

- Pra que isso?

- Eles imaginaram que após ser indiciado, você voltaria a me importunar.

- Que denúncia? Meu Deus! Você é doente!

- Você que é doente – retrucou ela. – Além de tentar me violentar, quis acabar com minha vida.

- Violentar? Eu nunca encostei em você! – replicou ele, cada vez mais incrédulo.

Ele rendeu-se ao desespero e desligou o celular. Tentou acalmar seus nervos e continuou andando. Quando chegou em sua casa, ligou novamente para ela.

- O que você quer? – perguntou ele, cansado.

- Ah, acho que agora estamos progredindo.

- Não venha com tolices, Elisabete. O que quer para consertar toda essa encrenca?

- Você.

Paulo engoliu em seco e prendeu a respiração. O que aquilo significava?

- Não.

- Você não está entendendo, meu bem – falou ela, enquanto estava tranquilamente sentada na varanda fumando um cigarro. – Você será julgado e condenado por um crime que não cometeu e apodrecerá em uma prisão fétida por pelo menos vinte anos. É uma pena desperdiçar assim um homem tão atraente como você.

- Por que está dizendo essas coisas? Não acabou de me inocentar? E as escutas?

- Eu blefei – ela riu.

- Retire a acusação, Elisabete. 

- E perder a chance de ter você aqui comigo? Nunca!

- Elisabete, escute. Não sei o que você viu em mim, mas garanto que não sou nada do que está pensando. Não tenho nada que possa te interessar.

- Aí que você se engana. E então? Posso te esperar hoje?

- Não!

- Então, adeus!

No dia seguinte, a polícia bateu na porta de sua casa e Paulo foi levado para a delegacia da mulher para prestar depoimento e foi indiciado por crime de tentativa de abuso sexual e homicídio. Como negasse veemente a autoria dos crimes dos quais estava sendo acusado, sofreu tortura e ficou preso por dois dias. Ainda assim, continuou recusando a investida de Elisabete, quando esta lhe telefonou após ser libertado.

- Muito bem, Paulo, vejo que você quer mesmo perder a liberdade. Só quero avisá-lo de que seu julgamento será amanhã.

- Amanhã?! Mas como? Esses processos duram semanas, às vezes, até meses.

Eu sou uma mulher influente, não se esqueça. E então? Mudou de idéia a meu respeito?

Paulo permanecera em silêncio, tentando encontrar uma saída. Refletiu que não valia à pena perder a vida inteira se Elisabete queria-o por apenas uma noite.

- Mudei – respondeu, cansado.

- Ótimo! – exclamou ela, com ar vitorioso. – Você já pode ir se preparando para mudar para cá.

- Mudar? – Ele sentiu o chão sumir de seus pés.

- Ou isso ou o presídio masculino. Você escolhe.

Após uma pausa, ele perguntou:

- O que vai fazer pra me livrar?

- Primeiro eu vou reconhecer o sujeito que me atacou. Vou dizer que me enganei. O homem que me agrediu não foi você, mas tinha roupas e crachá com seu nome, por isso, julguei que fosse você.

- Nunca perdi meu crachá. Não vão acreditar em você.

- Falsificação, meu bem – comentou ela, com ar natural. – Depois de alguns dias, quando eles estiverem procurando um outro criminoso qualquer, falaremos mais de perto, você e eu. – Silêncio na linha novamente. – Ah, Paulo, sem truques, tá? Senão posso voltar a acusar você.

Ele assentiu e desligou o telefone. Os resultados do tratamento policial faziam-se sentir em todo seu corpo e, cambaleando, Paulo seguiu para o quarto, onde se deitou para uma noite de sono sem sonhos.

Dois dias depois, Paulo estava novamente diante de Mauro, que lhe pedia desculpas em nome da empresa na pessoa do Sr. Laércio pela acusação indevida. 

- A própria Elisabete se desculpou conosco e fez questão de que você fosse reintegrado à equipe. Além disso, a empresa irá ressarci-lo pelos danos morais através de uma generosa indenização.

- Aceito o dinheiro – disse Paulo, até então calado ouvindo os esclarecimentos –, quanto ao emprego, preciso pensar.

Ele deixou a sala e saiu da empresa, mas mesmo depois de Elisabete tê-lo inocentado, persistia a sensação de que todos olhavam-no com desprezo e discriminação. Paulo lembrou-se da esposa e imaginou como ela ficaria decepcionada se estivesse viva. Sentiu-se repugnante e cuspiu no chão, enquanto seguia para a solidão de sua casa, onde procuraria refúgio, embora não pudesse se esconder de sua própria consciência.



CAPÍTULO 3 - PARTE III - O MANUAL DA VIAGEM



A produção, normalmente monótona, batia o recorde de tédio naquela manhã. Paloma conferia as ASLA’s; Natália digitava todo o movimento conferido; Tatiana avisava o corte de rede e de vez em quando tentava ligação com Paulo para verificar o defeito apontado por Elisabete no dia anterior; Valéria cuidava do controle de material; Luíza atualizava a planilha de abastecimento.

Depois de ter telefonado para cerca de duzentos assinantes, Tatiana rendeu-se à exaustiva tarefa do aviso de corte, que nada mais era do que avisar os assinantes de uma localidade afetada por projetos de expansão e manutenção, que o telefone poderia ficar mudo temporariamente. Essa ação tinha o objetivo de os assinantes não abrirem reclamação no 0800 da Sul Telefonia, e consequentemente, onerarem os indicadores.

Resolveu descansar e passou a ler alguns textos que criara. Assim lembrou do “Manual da Viagem”, que fora tão comentado no encontro do final de semana. Tatiana aceitara o desafio de Paloma e Luíza, que lhe chamavam constantemente a atenção em seus momentos de delírio, e escreveu um manual ensinando como “viajar”:


“MANUAL DA VIAGEM


Se você está cansado (a) da realidade e deseja “viajar” em espaços desconhecidos, como, por exemplo, outras galáxias que existem eu seu subconsciente, observe os procedimentos a seguir e... Boa “Viagem”!


  1. Concentre-se em um foco: pode ser uma lembrança, um sonho que você deseje tornar realidade, ou ainda o que bem entender.
  2. Selecionado o objetivo, comece a pensar. Imagine pessoas, lugares, sinta perfumes, lembre o sabor das coisas, deixe sua imaginação guiá-lo (a).
  3. Não se preocupe para onde vai, apenas imagine.
  4. Não perca a concentração, senão você corre o risco de ter que começar tudo de novo.
  5. Certamente, enquanto estiver se projetando para dentro de si mesmo, algumas coisas chamarão a sua atenção. Pense nestas coisas, em fatos antigos com os quais elas poderiam se encaixar.
  6. Viu? Não é difícil, não é mesmo? Ah, esqueci de avisar que você não deve preparar mala alguma. Vá sozinho (a), sem contrapeso, sem objetos que poderiam firmar seus pés no chão.
  7. Seja autêntico (a)! Não deixe que os outros interrompam a sua “viagem”! Esqueça o mundo ao seu redor.
  8. Se você for muito longe, não se desespere. Você nem vai perceber.
  9. A política da qualidade da “viagem” é a seguinte: A viagem dedica-se a atender exclusivamente o Id e o Ego, seus clientes diretos, através da criatividade exacerbada e de um complexo controle de concentração que vise aprimorar continuamente seu talento imaginativo.
  10. A missão da “viagem” é transpor as barreiras da coerência. Portanto, “viaje”! O seu mundo interior aguarda você de braços abertos.”


Tatiana leu o texto, alterando alguns vocábulos e voltou mentalmente para o momento em que o escrevera. Simplesmente, uma chave parecia ter sido ligada em seu cérebro naquele dia e ela fez um mapeamento de uma das suas “viagens”, conseguindo, portanto, reunir informações para traduzir em texto a sua “habilidade”. Observou novamente a palavra “autêntico” na sétima sentença. Pelo seu significado linguístico o termo não era apropriado naquela frase, mas Tatiana respeitou uma brincadeira que ela e Luíza haviam criado certo dia. Na ocasião, Tatiana fizera uma pergunta cuja resposta era óbvia por não existir uma segunda alternativa e, Luíza, impaciente, respondera de maneira curta e direta. Tatiana então quis chamá-la de grossa ou algo semelhante, mas errou o termo e exclamou: “Sua autêntica!”. A exclamação gerou risos e dali nasceu a brincadeira.

As colegas enxergavam suas “viagens” como uma fuga e, apesar de rirem, desdenhavam do seu talento. Todas sabiam que Tatiana sonhava em ser romancista, mas somente Natália acreditava verdadeiramente na criatividade da amiga.

- Você vai chegar até a Academia Brasileira de Letras, você vai ver – profetizou Natália, certa vez em que conversavam no refeitório.

- Fala sério, Natália! Eu ainda nem consegui publicar minhas histórias – respondeu Tatiana, considerando a ideia mais absurda que já ouvira.

De repente, Tatiana ouviu seu nome e sentiu como se tivesse caído de uma montanha. O grito abafado por causa do susto gerou nova torrente de gargalhadas. “Elas realmente não entendem”, pensou Tatiana, enquanto atendia a solicitação de Paloma e voltava ao insensível mundo real.

Por volta das 10h Tatiana finalmente conseguiu contato com Paulo e comentou sobre a reclamação feita por Elisabete. 

- Estou indo para lá – disse ele, com jeito de falar friamente profissional.


CAPÍTULO 3 - PARTE II - REVIVENDO O PASSADO

Eram 20h e Paulo chegou finalmente em sua residência. Retirou o uniforme e foi para o banho. Após, abriu uma garrafa de cerveja e bebeu o primeiro copo em apenas um gole. Em seguida, colocou um peito de frango para cozinhar.

- Uma lasanha vai cair muito bem hoje – disse ele.

Enquanto cozinhava, Paulo recordava que este era o prato predileto de sua esposa Evelin. Assim, ele voltou ao passado.






Ele era o responsável pelos ensaios musicais do grupo de jovens de uma comunidade evangélica. Tocava violão e cantava. Conhecera Evelin quando ela começou a participar do coral. Desde o princípio, admirou seu carisma, porque ela possuía o poder de cativar as pessoas com sua voz doce e melodiosa. Ela não era a garota mais bonita ou a mais popular, mas marcava presença onde quer que fosse. As crianças da catequese adoravam-na, os amigos sempre procuravam-na para ouvir as palavras de consolo que era capaz de dizer, os adultos frequentavam as tardes de louvor para ouvi-la cantar, onde ela doava toda sua alma. E a admiração desenvolveu um sentimento mais forte que Paulo já não conseguia esconder.

Certo dia, em uma pausa dos ensaios, Paulo tomou coragem e decidiu abrir seu coração. Estavam sozinhos na sala e ele aproveitou a oportunidade:

- Eu tenho uma coisa muito importante para dizer, Evelin.

- E o que é? – perguntou ela, curiosa.

- É que eu te amo...

- Eu sei – interrompeu ela, sorrindo com doçura e surpreendendo-o. – Eu também te amo porque você é meu irmão.

Ele teve a intenção de explicar que ela estava enganada, mas perdeu a chance, porque o Pastor entrou naquele instante para acompanhar o ensaio. Paulo julgou que Evelin não deu importância a sua declaração e sentiu-se muito magoado.

Apesar disso, houve uma chance para ele declarar-se de verdade por ocasião de um retiro em uma propriedade rural. Após as orações e os cantos, os jovens aproveitaram para tomar banho no rio. Naquele instante em que todos se divertiam, Evelin afastou-se e ficou perdida em seus próprios pensamentos. Paulo observou que ela estava quieta, o que não era de seu costume, e apanhou uma flor silvestre para ir ao seu encontro.

- Uma flor para outra flor – comentou ele, estendendo para ela o presente e sentando-se ao lado dela.

- Obrigada, você é muito gentil.

- Gentil? É isso que você pensa que sou? Só isso? – Ela, confusa, apenas movimentou a cabeça para confirmar. – Acho que você nunca percebeu nada, não é? – Evelin não respondeu e desviou os olhos para a flor em sua mão. Ele tentou outra vez. – Por que você está aqui, triste e isolada dos outros?

- Porque nesse momento acabei sentindo uma solidão muito grande. Eu sei que não devo reclamar, porque Papai do Céu está sempre fazendo companhia pra gente.

- Mas você não está só.

Paulo segurou a mão dela e os olhos de ambos permaneceram fixos durante um longo minuto. De repente, uma lágrima desceu pelo rosto dela.

- Paulo, você está falando sério?

- Pensei que tivesse compreendido naquele dia que falei que te amava.

- É que eu achei que poderia ser uma brincadeira sua e não quis me iludir, porque já te amava.

- Eu jamais pensaria em te enganar, Evelin. Te amo, te amo e é isso aí – falou ele, subitamente nervoso.

Ela deu um beijo no rosto dele e Paulo abraçou-a. O tempo passou e eles resolveram se casar. Todos os amigos do grupo foram convidados. Na cerimônia, Evelin cantou para Paulo, surpreendendo-o com sua declaração de amor. Viveram quatro anos muito felizes. Ele formou-se em telecomunicações e começou a trabalhar em uma empresa do ramo como técnico em instalações telefônicas. Evelin formara-se em pedagogia e trabalhava em uma instituição pré-escolar.

Eles amavam-se muito, eram amigos inseparáveis e gozavam de uma vida plena de felicidade. Como tudo estava correndo bem, decidiram ter um filho. Evelin, então, fez diversos exames e descobriu que não podia engravidar. Aquele resultado apagou sua alegria e vontade de viver. Ela tornara-se depressiva e seu trabalho trazia-lhe ainda mais sofrimento.

Paulo jamais cobrou dela o filho que eles gostariam de ter, mas mesmo assim, ela não aceitou a idéia de que jamais poderia ser mãe. Assim, abandonou seu trabalho, começou a sofrer crises nervosas que terminavam no pronto-socorro sem causa aparente, tinha sintomas de gravidez e, ao contrário do que os médicos afirmavam, acreditava que conseguiria conceber o filho tão desejado. Cada sintoma fazia com que ela imediatamente realizasse o teste de gravidez e a cada vez que o resultado era negativo, Evelin isolava-se para remoer sua mágoa.

Paulo tentou de todas as formas suprir as necessidades dela, desdobrando-se em atenção e carinho. Chegou a sugerir a adoção, o que ela repudiava sempre que se tocava no assunto.

- Meu bem, tem tanta criança precisando de pai e mãe – argumentou ele, enquanto afagava os cabelos dela. – Pense bem, será que não é isso que Deus espera de nós?

Evelin, entretanto, mudava de assunto ou se fechava em seu sofrimento. Com frequência ela telefonava para Paulo, pedindo ajuda porque se sentia mal, e ele, sem hesitar, voltava para casa para consolá-la.

Um dia, ele foi designado para cobrir a rota de outro instalador além da própria rota e não deu atenção quando a esposa ligou em seu celular.

- Evelin, se controla que eu já estou chegando.

Passava das 15 horas quando ela ligou, mas ele estava atarefado demais para atendê-la naquele momento. Voltou para casa somente depois das 19 horas quando finalmente conseguira vencer todo o trabalho.

- Amor, cheguei!

Normalmente ela vinha ao seu encontro para abraçá-lo e beijá-lo. Entretanto, não aparecera. Paulo sentiu uma súbita preocupação e chamou-a de novo, procurando-a por todos os cômodos da casa. Finalmente, encontrou-a no quarto, desmaiada sobre a cama, com os olhos abertos e a pele arroxeada.

- Evelin! Sou eu, me responde!

Ele sentou-se na cama e puxou-a para o colo. Evelin ainda sussurrou que o amava antes de perder completamente os sentidos. Ele abraçou seu corpo frio e quase sem vida e chorou. Retirou o celular do cinto e chamou uma ambulância, que pareceu levar horas para chegar. Os socorristas levaram-na com vida até o hospital, onde ela faleceu assim que chegou. A causa da morte havia sido intoxicação devido a superdosagem de calmantes, mas Paulo sabia que a depressão havia sido responsável por sua morte, pois Evelin desistira de lutar pela vida quando ele, a única pessoa que estivera sempre presente, se negou a ir vê-la.




Paulo voltou de sua viagem ao passado e por um momento o aroma saboroso do refogado de frango provocou-lhe náuseas. Sorveu o último gole de cerveja e engoliu com dificuldade. Emoções conflitantes como saudade e culpa tiraram seu apetite e ele desligou o fogo, indo se deitar, embora soubesse que passaria mais uma noite em claro.